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O Direito à Cidade como centro da Nova Agenda Urbana
16/07/2016Por Nelson Saule Júnior*
O modelo de desenvolvimento urbano atual tem falhado com a maioria dos habitantes das cidades em lhes conferir uma vida urbana digna. Este modelo tem promovido a mercantilização da cidade que privilegia os grupos financeiros e de investidores em detrimento dos interesses e das necessidades da maioria da população urbana. Os efeitos do padrão de urbanização, como a gentrificação, a privatização dos espaços públicos e dos serviços básicos, a segregação urbana, a precarização dos bairros da população pobre, o aumento dos assentamentos informais, a utilização de investimentos públicos para promover projetos de infraestrutura que atendem aos interesses econômicos dos negócios imobiliários apontam que novos caminhos de vida e desenvolvimento nas cidades precisam ser adotados na nova agenda urbana.
Por essa razão, a nova agenda urbana deve abraçar uma mudança no padrão urbano predominante, a fim de aumentar a equidade urbana, a inclusão social, a participação política e dar uma vida digna para a população urbana.
A nova agenda urbana deve reconhecer que os atuais padrões de desenvolvimento urbano com base nas premissas de cidades competitivas para atração de negócios e “mercantilização da terra e especulação resultante” não serão capazes de criar um modelo sustentável de inclusão social, de cidadania, de democracia, de diversidade cultural e de qualidade de vida em nossas cidades.
Essa agenda precisa ter outro paradigma para estabelecer a ligação entre a inclusão social, a democracia participativa e os direitos humanos com o território para tornar as cidades inclusivas, justas, democráticas e sustentáveis.
A nova agenda urbana, por ser uma agenda do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) que foi criada para a promoção dos direitos humanos e da paz entre as nações e os países, deve ter como ponto de partida a promoção destes direitos para o estabelecimento de um novo paradigma para o desenvolvimento urbano.
O direito à cidade é um novo paradigma que fornece uma estrutura alternativa de repensar as cidades e a urbanização, com base nos princípios da justiça social, da equidade, do efetivo cumprimento de todos os direitos humanos, da responsabilidade para com a natureza e as futuras gerações, e da democracia local. O direito à cidade como um direito humano coletivo emergente cumpre esse papel de ser o coração da nova agenda urbana constituída por princípios, ações, metas, indicadores e formas de monitoramento destinados ao modelo de cidades inclusivas, justas, democráticas e sustentáveis.
Um grande desafio é precisar a concepção e a própria definição do direito à cidade nessa agenda, levando em consideração as normas internacionais de direitos humanos que fundamentam a sua existência como um direito humano coletivo/difuso e os diversos documentos internacionais existentes sobre este direito, bem como os sistemas legais nacionais que adotaram tal direito como um direito fundamental.
Os documentos de referência para a compreensão do direito à cidade como um direito humano emergente na nova agenda urbana são os seguintes: Carta Mundial do Direito à Cidade (2005); Carta Europeia dos Direitos Humanos nas Cidades (Saint-Denis, 2000); Direitos Humanos nas Cidades – Agenda Global (Cidades e Governos Locais Unidos – CGLU, do inglês United Cities and Local Governments – UCLG, 2009); Carta da Cidade do Direito à Cidade (México, 2009); Carta do Rio de Janeiro sobre o Direito à Cidade (Fórum Urbano Mundial, 2010); Por um Mundo de Cidades Inclusivas (Comitê de CGLU sobre a Inclusão Social, Democracia Participativa e Direitos Humanos, de 2013); Inclusão Social e Democracia Participativa e os Princípios Gwangju para uma Cidade dos Direitos Humanos (2015).
Nos sistemas legais nacionais destaca-se a legislação brasileira Estatuto da Cidade (2001) e a Constituição do Equador, que contém uma definição legal do direito à cidade. No Artigo 2o , incisos I e II do Estatuto da Cidade, o direito a cidades sustentáveis é entendido como o direito à terra urbana, à habitação, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as gerações atuais e futuras, e como uma gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, na execução e no acompanhamento de desenvolvimento urbano de projetos, planos e programas.
Essa definição traz a compreensão de um direito difuso para estabelecer que é um direito das gerações presentes e futuras a adotar, por analogia, o mesmo conceito do direito a um ambiente que deve ser preservado para as gerações presentes e futuras.
No Artigo 31 da Constituição do Equador, o direito à cidade é o direito ao pleno gozo da cidade e de espaços públicos, sob os princípios da sustentabilidade, da justiça social, do respeito às diferentes culturas urbanas e do equilíbrio entre o urbano e o rural. O direito à cidade é baseado na gestão democrática, na função social e ambiental da propriedade e da cidade, e no exercício pleno da cidadania.
A definição do direito à cidade a ser adotada na nova agenda urbana tem como fundamento o Artigo 4, item 4, da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005, que inclui os bens a serem protegidos, entre os quais a cidade pode ser protegida como um bem comum.
O Artigo 11 da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural constituiu um inventário dos bens que fazem parte do patrimônio cultural e natural. Exemplos das cidades já incluídas nessa lista são: Cidade de Potosí, Bolívia (2014); Cidade Antiga de Jerusalém e seus Muros (1982); Cidade Antiga de Damasco, República Árabe da Síria (2013); Cidade Mercantil Marítima de Liverpool, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (2012); Cidade Histórica de Zabid, Iêmen (2000); e Cidade Velha de Saná, Iêmen (2015).
Pelos artigos 2 a 11 da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial também é permitida a proteção difusa dos espaços tidos como bens culturais imateriais, considerando as áreas urbanas e rurais. Exemplos de espaços urbanos e rurais que estão na lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade: espaço cultural da Yaaral e Degal Mali (2008); espaço cultural de Palenque de San Basilio, Colômbia (2008); Fiesta dos Pátios em Córdova, Espanha (2012); Majlis, emirados culturais e espaço social Árabes Unidos, Arábia Saudita, Omã, Qatar (2015).
O direito à cidade é, portanto, um direito coletivo existente, como o direito dos habitantes presentes e das futuras gerações de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas e sustentáveis como um bem comum, por meio de uma interpretação extensiva e analógica da proteção da cidade como bens culturais de acordo com as convenções internacionais anteriormente mencionadas.
O direito à cidade é aplicável a todas as cidades e assentamentos humanos, dentro dos sistemas jurídicos nacionais. Com base nessa definição acima, o direito à cidade é um direito coletivo/difuso que vê a cidade como um espaço coletivo que pertence a todos os habitantes, que contém três elementos essenciais: proteção legal das cidades como um bem comum; direito coletivo/difuso; e a titularidade coletiva exercida por grupos representativos de moradores, associações de moradores, organizações não governamentais (ONGs), Defensoria Pública e Ministério Público, por exemplo.
O direito à cidade deve ser adotado e compreendido na nova agenda urbana como o direito de todos os habitantes, da presente e das futuras gerações, de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas e sustentáveis, definido como um bem essencial comum para a qualidade de vida.
O direito à cidade implica ainda responsabilidades sobre os governos e as pessoas a reclamar, defender e promover este direito. A cidade como um bem comum contém os seguintes componentes: a cidade livre de qualquer forma de discriminação; a cidade com cidadania inclusiva; a cidade com maior participação política; a cidade que cumpre as suas funções sociais; a cidade com espaços públicos de qualidade; a cidade com igualdade de gênero; a cidade com diversidade cultural; a cidade com economias inclusivas; a cidade com um ecossistema comum que respeite os vínculos rural-urbanos.
O direito à cidade como um direito coletivo/difuso pode ser exercido em cada metrópole, vila ou cidade que está institucionalmente organizada como unidade local administrativa distrital, municipal ou de caráter metropolitano. Ele inclui o espaço urbano, bem como os arredores rurais ou semirrurais que fazem parte do seu território.
Somada à adoção e à definição do direito à cidade, a nova agenda urbana deve conter instrumentos para o monitoramento da implementação desse direito pelos países, tais como:
• a constituição, pela ONU, de uma força-tarefa a partir de 2017 para promover campanhas, sensibilização e mobilização nas regiões e nos países para a implementação da nova agenda urbana;
• criar um observatório internacional para o direito à cidade como uma ferramenta global para reunir informações (isto é, as melhores práticas, estruturas legais, estudos de caso) e promover o direito à cidade, bem como um fórum internacional sobre o direito à cidade com o objetivo de reunir todas as partes interessadas relevantes cometidas para empurrar o direito de agenda da cidade (incluindo as organizações globais, todos os níveis de governo, a sociedade civil e o setor privado socialmente responsável);
• produzir relatórios periódicos sobre o estado da nova agenda urbana nos âmbitos regionais e nacionais (a cada três anos).
*Nelson Saule Júnior é advogado, professor do Programa de Pós-Graduação de Direito Urbanístico da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenador-geral e da área direito à cidade do Instituto Pólis, coordenador executivo da Plataforma Global do Direito à Cidade, coordenador de relações internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e conselheiro do Conselho das Cidades (ConCidades)