O que é Direito à Cidade?
O que é Direito à Cidade?
Fazer uma festa na praça ou uma passeata na rua. Andar por aí sem medo, independente da hora ou lugar. Contar com transporte digno, coleta seletiva e compostagem. Poder decidir o que é melhor para seu bairro, sua cidade e seu país.
Tudo isso é Direito à Cidade!
Todos nós construímos a cidade pouco a pouco no nosso cotidiano: pegando o ônibus para ir trabalhar, construindo nossa casa, elegendo prefeitos e vereadores, participando das mobilizações em nossa vizinhança… Se produzimos coletivamente a cidade, temos também o direito de habitar, usar, ocupar, produzir, governar e desfrutar das cidades de forma igualitária.
O Direito à Cidade é um direito humano e coletivo, que diz respeito tanto a quem nela vive hoje quanto às futuras gerações. É um compromisso ético e político de defesa de um bem comum essencial a uma vida plena e digna em oposição à mercantilização dos territórios, da natureza e das pessoas.
veja também
resgate histórico
A expressão “direito à cidade” foi originalmente cunhado pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968, ano que ficou marcado pelo potente movimento iniciado pelas juventudes engajadas na luta por direitos civis, liberação sexual, oposição ao conservadorismo, crítica à guerra no Vietnã, entre outras. Lefebvre estava sensível às vozes e aos movimentos que irrompiam nas ruas, percebendo que as cidades haviam se convertido no locus de reprodução das relações capitalistas, mas também onde a resistência poderia constituir formas de superação criativa desse modelo.
Concebido como homenagem ao centenário da obra de Karl Marx “O capital” o livro-manifesto “O direito à cidade” pode ser considerada um tradutor desse período de efervescência, já que faz críticas à mesma estrutura opressora amplamente questionada pelos protestos: a vida urbana regulada pelo cotidiano, despolitizada e monótona, sentida mais intensamente pela classe operária, que tem o seu tempo consumido pelo trajeto casa-trabalho, sem possibilidade de lazer, encontros e manifestações de desejos. Nas palavras de Lefebvre, “[o direito à cidade] significa o direito dos cidadãos-citadinos e dos grupos que eles constituem (sobre a base das relações sociais) de figurar sobre todas as redes e circuitos de comunicação, de informação, de trocas”. É um apelo e uma exigência que “só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada”.
Nesse sentido, o direito à cidade não pode ser entendido como uma demanda por infraestrutura, equipamentos urbanos ou habitação social por si só. Esses “benefícios” podem muito bem ser proporcionados sem que nenhuma ruptura ocorra em relação ao modo de produção capitalista e, consequentemente, à maneira hierarquizante e segregadora como o espaço é (re)produzido e apropriado. O direito à cidade, portanto, não se confunde com uma política urbana estatal, com um projeto urbanístico ou com um marco legal específico, ainda que possa influenciar e estar parcialmente refletido nessas estruturas institucionais. Da maneira como foi concebido e proclamado, está mais para uma utopia orientadora da luta social do que como um direito propriamente jurídico. Trata-se de muito mais do que a liberdade individual de acesso aos recursos urbanos. Nas palavras de David Harvey “é o direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.”
O direito à cidade traz em seu núcleo a ideia fundamental de que as desigualdades e opressões – racismo, desigualdade de gênero e LGBTfobia – são determinantes e estão determinadas na produção do espaço. A imposição de padrões de segregação e violência a segmentos sociais específicos faz parte da constituição social e política dos territórios da e na cidade segundo o atual modelo de urbanização. Então a transformação radical conclamada pelo direito à cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo para reformular os processos de produção do espaço.
Resgatar essa dimensão utópica do direito à cidade é fundamental para alimentar as lutas atuais. A realidade urbana francesa não se mantém da mesma forma hoje em relação aos anos 1960, quando Lefebvre lançou seu livro. Tampouco, aplica-se a países da periferia do capitalismo. Por mais que existam processos estruturais que orientam globalmente a espoliação, há condições distintas em cada sociedade que fazem emergir questões próprias a serem enfrentadas.
No Brasil, as ideias de Lefebvre foram logo difundidas graças à rápida tradução para a língua portuguesa ainda na década de 1970 e ocorreu uma ressignificação da noção de direito à cidade a partir das demandas concretas por habitação, equipamentos urbanos, infraestrutura e transporte, posto que uma grande parte da população urbana do país vivia em condições urbanas muito precárias. Além disso, a década de 1980 foi marcada por um contexto de reivindicação pela ampliação da cidadania e da participação política nas cidades, fruto do processo de redemocratização. Dessa maneira, o ideário do direito à cidade sofreu uma simbiose com o ideário da reforma urbana que focava suas reivindicações no tripé: a) acesso à terra e à moradia; b) função social da propriedade e combate à especulação imobiliária; etc) gestão democrática das cidades.
Tal simbiose levou à aprovação do capítulo da política urbana na Constituição de 1988 e teve reflexo nas duas décadas que se seguiram, quando o país experimentou uma significativa produção legislativa no campo do Direito Urbanístico, novos modelos de gestão pública com viés participativo e políticas voltadas à implementação de direitos sociais. A lei mais emblemática nesse período, sem dúvidas, foi o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). Em seu artigo 2º, essa lei prevê como primeira diretriz da política urbana brasileira a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
Essa concepção está ainda muito presente entre juristas, urbanistas e militantes sociais, que entendem o direito à cidade como um agrupamento de direitos. Mais do que uma visão fragmentada e parcial, trata-se de uma certa cumplicidade, ainda que não intencional, do modo de produção capitalista na medida em que silencia sobre as desigualdades estruturais. Ao fazer crer que a universalização do saneamento básico, a tarifa zero no transporte público ou a eliminação do déficit habitacional são o direito à cidade, vende-se a falsa promessa de que o problema pode ser solucionado por um conjunto de políticas setoriais sem mudar o sistema social, político e econômico como um todo.
É preciso disputar a ideia de cidade como um bem comum. Como ideário profundamente anticapitalista, que resgata os valores de uso e a proteção da vida em contraposição à ideia de cidade mercadoria. Ainda que o histórico de lutas dos movimentos brasileiros ligados à reforma urbana esteja centrado legitimamente em aspectos materiais,, é preciso ampliar a consciência de que o direito à cidade exige mais. Mesmo que as infraestruturas urbanas sejam universalizadas, persistirão as discriminações de raça, gênero e orientação sexual, a moradia continuará mal localizada e as pessoas com deficiências continuarão excluídas das soluções urbanas. As lutas setoriais não podem ser desprezadas, pois contribuem para organizar as demandas, mas não se pode perder a visão integradora e as repercussões espaciais das desigualdades.
Como fruto dessas lutas sociais, a ideia de direito à cidade está também em constante transformação. As conquistas e derrotas, e também a emergência de sujeitos coletivos antes invisibilizados, conferem outros sentidos a esse direito. Mas, assim como antes, o direito à cidade deve continuar carregando a poderosa ideia de recriar a nós mesmos por meio da recriação e ressignificação da cidade.