a retomada das aulas e as mortes por covid-19 na educação
a retomada das aulas e as mortes por covid-19 na educação agosto 2021
O Brasil é um dos países que registrou maior tempo sem aulas presenciais durante a pandemia de coronavírus. A política nacional de combate à pandemia não estabeleceu a educação e o funcionamento das escolas como um serviço, verdadeiramente, essencial. O resultado direto da falta de coordenação e investimento em ações direcionadas ao ensino é um atraso na aprendizagem que levará anos para ser recuperado.
Não há questionamentos quanto à necessidade urgente do funcionamento presencial das escolas, no entanto, o retorno às aulas, sem se atentar aos protocolos de segurança, pode resultar no aumento da mortalidade dos profissionais da educação, adultos tutores e responsáveis e, no limite, das crianças e adolescentes.
O que observamos até o momento é que os decretos que determinam aberturas e fechamentos de serviços não consideram todos os indicadores necessários para sua definição. É necessário analisar mais do que apenas as taxas de ocupação dos leitos em hospitais. Incidência de casos, percentual de testes positivos em relação aos testes realizados, rastreamento de contágio, pesquisas de soroprevalência e taxas de imunização completa (aplicação das duas doses, quando for o caso) e a redução efetiva e sustentada de internações e óbitos devem entrar na balança.
Atualmente o município de São Paulo está na fase de transição do Plano São Paulo, que permite o retorno gradual dos serviços. Por meio de decreto, publicado no início de julho, o governador do Estado de São Paulo alterou os protocolos de funcionamento das escolas, permitindo a redução das medidas de segurança – como o distanciamento entre as pessoas e o aumento da capacidade máxima para até 100% – a partir de agosto deste ano. Além da flexibilização das medidas sanitárias, a infraestrutura disponível para os alunos também dificulta um retorno seguro. Das 5.209 unidades escolares no estado, 82% não possuem mais de dois sanitários destinados ao uso dos alunos. Ao mesmo tempo, o Governo do Estado gastou apenas 5% do orçamento previsto para a adequação física dos espaços escolares.
Apesar do avanço da vacinação, o ritmo da imunização completa não acompanha a geografia da pandemia no município de São Paulo, as áreas que possuem maiores taxas de imunização tem uma localização inversa a das regiões que apresentam maior mortalidade. A retomada das aulas, nessas condições que desconsideram a segurança dos profissionais da educação e dos estudantes, pode resultar no aumento de casos e mortes no setor, e como consequência, no município como um todo. As análises da mortalidade de profissionais que atuam no setor da educação, bem como de crianças e adolescentes, evidenciam que as medidas de segurança e monitoramento precisam ser bem delimitadas para garantir sua efetividade.
[à esq.] Mapa da taxa de vacinação (imunização completa) da população adulta no Município de São Paulo; [à dir.] mapa da sobremortalidade, da população de 18 a 59 anos, observada no Município de São Paulo. Fonte: SI-PNI/Open DataSUS, F. Seade, SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP
[sobremortalidade] Sobremortalidade é caracterizada quando o número de óbitos registrados (ou observados) supera o número de óbitos esperados (pela epidemiologia) para um grupo demográfico ou localidade.
as mortes da educação na pandemia de covid-19
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Pólis, que analisou os dados de mortalidade a partir da ocupação da vítima, revelou quais são os grupos mais atingidos pela pandemia. O estudo analisou óbitos ocorridos de março de 2020 a março de 2021, que totalizaram 30.796 mortes de pessoas residentes na cidade de São Paulo. Os óbitos entre as categorias de trabalho remunerado corresponderam a 37,8% do total. As outras categorias que são aposentados (32,2%), donas de casa (15,7%), desempregados (1,3%), estudantes (0,2%) complementaram o restante das ocupações identificadas.
Dentre as categorias de trabalho remunerado, o setor da educação registrou, naquele período, 475 óbitos, que correspondiam a 1,5% das mortes totais observadas no município. O estudo apontava que o grupo não se destacava dentre os mais impactados, tendo em vista a suspensão das aulas presenciais durante a maior parte de 2020, o que contribuiu para a contenção da mortalidade. No entanto, o indicativo de crescimento das mortes em março já apontava indícios de aumento dos óbitos dentre profissionais que atuam no setor.
A atualização destes dados, que agora abrange os óbitos observados de março de 2020 a junho de 2021, revela que a situação no setor sofreu alterações. No período compreendido pela base de dados atualizada, trabalhadores da educação corresponderam a 756 óbitos, representando 1,7% do total de mortes no município. Destes, 327 (43%) ocorreram ao longo do ano de 2020 e 429 (57%) foram registrados no ano de 2021. O ano de 2021 com 6 meses de pandemia – e marcado por períodos de retomadas de aulas presenciais – foi mais letal do que os 10 meses anteriores. Ao mesmo tempo, em 2021, o MSP registrou 21.990 óbitos que correspondem a 94% das mortes em 2020, indicando que, para o período analisado, as mortes do setor de educação tiveram um crescimento superior ao total de mortes observadas na cidade, na comparação dos dois anos.
O cálculo do indicador, apresentado no estudo anterior, que avalia o impacto da mortalidade no setor – ao comparar a proporção de óbitos de um setor em relação ao total de mortes, com a proporção de trabalhadores que desempenham a atividade no município – apresentou alterações em diversas categorias. A educação, no entanto, é caracterizada por um crescimento de 40% do indicador, na comparação dos anos 2021 e 2020. É importante notar que o setor continua contribuindo pouco com o total de mortes observadas no município, no entanto, o aumento considerável do indicador, em 2021, aponta que há uma tendência de crescimento acelerado nas mortes de trabalhadores e trabalhadoras da educação, que pode ser acentuado pelo retorno presencial às aulas nestas condições propostas pelo governo estadual.
A quantidade de pessoas no município de São Paulo e o indicador foram calculados a partir da variável ‘Setor de Atividade’, disponível na Pesquisa Origem e Destino 2017.
A composição etária em 2021 já apresenta outro cenário. As mortes de pessoas com menos de 60 anos passaram a representar 46,4% dos óbitos observados no setor. O percentual de mortes de pessoas idosas (60 anos e mais) passou de 74%, em 2020, para 53,6%, em 2021. Ao analisar a distribuição das mortes de pessoas mais jovens no tempo, fica evidente que as mortes de 2021 estão relacionadas à retomada de atividades presenciais. O ano de 2021 também é caracterizado pelo aumento do percentual de profissionais pretos e pardos, que passaram de 26% das mortes em 2020 para 32%, em 2021.
Gráfico da distribuição etária dos óbitos no setor de educação. Comparação entre 2020 e 2021. Fonte: SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP. Dados de março de 2020 a 26 de junho de 2021.
Outro fator preocupante é a distribuição espacial das mortes. A princípio, a análise territorial do total de óbitos dos trabalhadores da educação indica uma maior concentração de mortes na região central (Santa Cecília, Bela Vista ou Liberdade). No entanto, a espacialização das mortes de profissionais com menos de 60 anos – ou seja, trabalhadores que realmente estão ativos no setor [1] – evidencia padrões socioeconômicos bastante diferentes. Os principais focos de óbitos de profissionais mais jovens estão em bairros mais afastados do centro (São Mateus, Itaquera ou Itaim Paulista), em áreas em que há predominância da população negra, marcadas pela sobremortalidade da Covid-19 e com piores taxas de cobertura vacinal. Demonstrando que esses profissionais possuem piores condições de proteção contra a infecção por Covid-19.
Gráfico da distribuição dos óbitos de profissionais da educação, de 18 a 59 anos. Fonte: SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP. Dados de março de 2020 a 26 de junho de 2021.
Mapa de calor de óbitos de profissionais da educação. Fonte: SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP. Dados de março de 2020 a 26 de junho de 2021.
[à esq.] Mapa de calor de óbitos de profissionais da educação, de 18 a 59 anos, no município de São Paulo. [à dir.] Mapa de calor de óbitos de profissionais da educação, acima de 60 anos, no município de São Paulo. Período compreendido pela base: março de 2020 a 26 de junho de 2021.
mortalidade infantil por covid-19
O decreto estadual que permite a flexibilização das medidas sanitárias para o retorno às aulas parte do princípio de que (1) a mortalidade de crianças e adolescentes, por Covid-19, é menor do que em adultos; (2) quando há desenvolvimento da doença, em grande parte, os quadros tendem a ser leves ou assintomáticos; e (3) que as crianças pouco contribuem para a transmissão do vírus. O Brasil, no entanto, apresenta a maior mortalidade infantil pelo vírus em comparação a qualquer outro lugar no mundo (com disponibilidade de dados).
Um estudo acerca da mortalidade infantil na Inglaterra revela que, nos primeiros 12 meses de pandemia, foram observados 25 óbitos de crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos. O país possui uma população desta faixa etária de 12 milhões de pessoas e uma taxa de mortalidade de 2 óbitos para 1 milhão de crianças e adolescentes. A comparação com os dados do município de São Paulo indicam uma grande disparidade. No mesmo período de pandemia, foram registrados 95 óbitos infantis por Covid-19 (suspeitos e confirmados). O município possui uma população de 2,8 milhões de crianças e adolescentes e uma taxa de 34 óbitos a cada 1 milhão de crianças e adolescentes. Se forem considerados todos os óbitos da base, que compreende 15 meses de pandemia, a taxa cresce para 48 óbitos a cada 1 milhão, ou seja, 24 vezes superior à taxa observada na Inglaterra.
Outro problema, que surge na análise da mortalidade infantil pelo vírus, é a subnotificação do diagnóstico. São poucas as mortes contabilizadas como causa básica por Covid-19, e isso é decorrente da baixa testagem e falta de diagnóstico adequado e más condições socioeconômicas.
A espacialização dos óbitos de 0 a 18 anos no Município de São Paulo revela o padrão territorial predominantemente periférico, sem registros nas regiões de maior renda. Além disso, 44,1% das crianças e adolescentes que morreram eram negras, apesar de pretos e pardos serem 32,4% dos óbitos observados na cidade. A mortalidade infantil por Covid-19 está presente na cidade e é caracterizada por crianças em territórios vulneráveis.
Apesar das mortes infantis contribuírem com um baixo percentual do total de óbitos, a presença de novas variantes pode alterar este cenário. Nos EUA, país que já vacinou parcelas mais significativas da população do que o Brasil, novos casos semanais de Covid-19 em crianças passaram da média de 2%, em 2020, para 24% das novas infecções semanais, em 2021, apesar de representarem apenas 16% da população.
Gráfico com as taxas de mortalidade infantil, por Covid-19, a cada 1 milhão de crianças e adolescentes (0 a 18 anos). Comparação entre Reino Unido e Município de São Paulo. Fonte: SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP e Smith et al, 2021.
Mapa de calor de óbitos de crianças e adolescentes, de 0 a 18 anos, no município de São Paulo. Fonte: SIM/PRO-AIM/CEInfo/SMS-SP. Dados de março de 2020 a 26 de junho de 2021.
considerações sobre o cenário atual
Como afirmado anteriormente, é inquestionável que o funcionamento das escolas é essencial. Todavia é necessário fazer uma leitura aprofundada da pandemia até o momento para determinar quais são as medidas essenciais para que esse retorno presencial às salas de aula não resulte no aumento de casos, colocando em risco a vida de profissionais da educação, tutores, responsáveis, crianças e adolescentes.
Até o momento, as políticas públicas voltadas ao ensino durante a pandemia falharam gravemente. Seja por não priorizarem, de fato, o funcionamento das escolas, como foi observado em alguns países que conseguiram permitir o retorno às aulas durante períodos maiores de tempo, após adotarem ”lockdowns” ou outras medidas sanitárias mais restritivas, o que resultou na redução geral de incidência de casos. Ou por não garantirem a infraestrutura necessária para a realização do ensino remoto. Em São Paulo, 100 mil alunos estão com dificuldade de acesso à internet e a entrega dos aparelhos para o acompanhamento das aulas foi feita com um ano de atraso.
O impacto do ensino remoto – e de má qualidade – vai muito além do atraso na aprendizagem e na dificuldade de acesso. A escola, especialmente para crianças e adolescentes em territórios vulneráveis, possui a função de garantir a segurança alimentar, o acolhimento e prevenção de casos de violência sexual, estimular a socialização, incidir sobre a saúde mental dos estudantes, além de ser um ambiente seguro que garantirá o cuidado adequado. É um espaço necessário para o desenvolvimento e funcionamento da sociedade. No entanto, a falta de medidas sanitárias compatíveis ameaçam o seu funcionamento adequado e colocam em risco a vida das pessoas que fazem parte da comunidade escolar.
Um estudo feito por pesquisadores de seis universidades brasileiras, a partir de modelos computacionais, procurou avaliar o impacto dos casos de Covid-19 nas escolas, com o retorno de atividades presenciais. A comparação entre o retorno das aulas presenciais e as aulas totalmente remotas demonstrou um aumento considerável de casos dentro e fora da escola, evidenciando que o protocolo que já era seguido no Estado de São Paulo não é seguro o suficiente.
É fundamental apontar que as condições colocadas para o retorno das aulas desconsideram os cenários apresentados até o momento. A análise dos dados é necessária para a delimitação de protocolos que garantam o funcionamento das escolas sem colocar em risco a vida de ninguém. Até o momento, os grupos mais afetados após a retorno de atividades presenciais – e, sob protocolos mais rígidos do que o proposto agora – resultaram na morte de profissionais mais jovens e crianças, ambos os grupos com maior percentual de pessoas negras do que a média de óbitos no município, e em regiões afastadas do centro, muitas delas caracterizadas por territórios vulneráveis. Uma reabertura nesses termos contribui para o agravamento das desigualdades sociais em curso.
veja também
medidas necessárias para um retorno seguro
A Rede de Pesquisa Solidária, no boletim nº32, fez uma análise dos protocolos de retorno às aulas presenciais, utilizados por estados e capitais do país, e criou um índice para avaliar sua efetividade, com base em guias e recomendações de agências internacionais. [2] Dentre as medidas avaliadas e propostas, de média ou alta complexidade, estão: transporte, distanciamento, higiene, ensino à distância, máscaras, ventilação, imunização e testagem.
Quanto ao transporte, a recomendação é de adoção de protocolos bem delimitados de higienização e ventilação dos veículos escolares. Em relação ao distanciamento, é necessário estabelecer limites de ocupação de classes e de interação entre diferentes turmas, em conjunto com o distanciamento mínimo entre carteiras nas salas de aula. Medidas de higiene que disponibilizem banheiros suficientes aos alunos, além dos produtos necessários, e o reforço da obrigatoriedade da higienização.
O ensino à distância, ou um modelo híbrido, continua sendo indispensável para momentos em que será necessário o fechamento das escolas, de acordo com parâmetros de monitoramento de casos na unidade de ensino e no município. O uso e distribuição de máscaras de qualidade, do tipo PFF2 (ou N95), além de campanha para a afirmação da importância do uso correto. Os espaços físicos devem garantir a ventilação suficiente, tendo em vista que a principal forma de transmissão do vírus é aérea. [3] Com a imunização completa (que inclui as duas doses necessárias) de profissionais da educação, a retomada de aulas presenciais certamente será mais segura. Protocolos de testagem e busca ativa de casos, que estabeleçam índices que apontem a necessidade da suspensão de atividades presenciais, associados à estratégia TRI (testagem ampla, rastreamento de contágio e isolamento efetivo). Por fim, a possibilidade de monitoramento da efetividade das medidas sanitárias adotadas é fundamental para avaliar se há necessidade de mudanças e adaptações.
[2] OMS – Organização Mundial de Saúde; CDC – Center for Disease Control; ECDPC – European Centre for Disease Prevention and Control.
[3] Em situações ideais, a medição de CO2 nas salas de aula seria uma medida complementar de monitoramento da ventilação para garantir que os espaços estão adequados à realização das atividades.
equipe
Este estudo é uma colaboração entre:
- Danielle Klintowitz, arquiteta urbanista e coordenadora gera do Instituto Pólis;
- Vitor Nisida, arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis;
- Lara Cavalcante, arquiteta urbanista e pesquisadora do Instituto Pólis;
- Deivison Faustino, professor do PPGSSPS da UNIFESP e pesquisador do Instituto Amma Psique e Negritude;
- Olinda Luiz, pesquisadora do HCSP e professora colaboradora da FMUSP;
- Jorge Kayano, médico sanitarista e pesquisador do Instituto Pólis. Participa do Coletivo Intersetorial pela Vida em São Paulo.
leia mais
dados abertos