crise climática: entrevista com marcio astrini
Nos últimos meses, uma série de fenômenos meteorológicos fizeram soar os alarmes para a situação de emergência em que se encontra o planeta e, consequentemente, a vida de todes que o habitam. Diante disto, conversamos com o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, para entender quais caminhos devemos trilhar para a construção de um futuro mais equilibrado e resiliente. Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Como introduzir e sensibilizar um cidadão para a luta climática, principalmente em países latino-americanos e do Sul Global onde as emissões per capita são muito baixas comparadas às de países do Norte, como o Canadá, EUA e Austrália, e levando em consideração que muitos não possuem acesso a níveis de básicos de consumo?
Para os países em desenvolvimento, e países com menos condições financeiras, você precisa ter as mudanças climáticas “linkadas” a uma pauta de combate às desigualdades sociais, de melhoria da condição de vida da população, porque não adianta para um país que já tem problemas estruturais muito graves, dizer que uma pauta de mudança climática vai condenar esse país a ficar ainda pior na condição de desenvolvimento econômico e desenvolvimento humano. Colocando em um ponto de vista mais prático: como falar para uma pessoa que hoje não tem acesso à saneamento básico, não tem acesso à alimentação de forma segura, à moradia, tem dificuldades de transporte, de mobilidade, por morar em um lugar muito remoto. Como você falar para essa pessoa que as mudanças climáticas vão trazer um problema para ela, daqui a 10 anos, que ela já tem hoje? Como você diz para uma pessoa “olha, talvez você tenha um déficit habitacional maior com as mudanças climáticas”; e a pessoa te responde “mas eu já não tenho casa para morar”. Então, esse tipo de argumentação, para algumas nações e para alguns lugares específicos do planeta não vai fazer a mobilização. O que nós precisamos é criar, dentro da agenda de combate às mudanças climáticas, ações para diminuir as desigualdades, criando resiliência local, envolvendo os agentes políticos locais, como prefeitos. Eu tenho feito muitas conversas com prefeitos para dizer que a agenda de mudanças climáticas pode ser uma oportunidade de gerar desenvolvimento local, econômico, de distribuição de renda. Principalmente em pautas específicas, como por exemplo, energia solar, que pode diminuir o custo de operação de serviços básicos do município, como a conta de luz de uma escola, dos aparelhos e estabelecimentos municipais, assim sobraria mais dinheiro em caixa para se investir em creches, hospitais etc. Na minha visão, temos que sempre encarar a questão dessa forma, em países como o nosso, para que tenhamos o ganho duplo – o combate às desigualdades, melhoria de renda e de vida e, ao mesmo tempo, gerar um impacto positivo para o clima.
No Brasil a principal componente das emissões é a mudança de uso do solo e agricultura, fonte da mesma atividade econômica: o agronegócio extrativista, em sua maioria exportador. Como cobrar o governo brasileiro, os governantes brasileiros e a população a agir, porém sem esquecer-se que nós estamos pagando uma conta que não é nossa, afinal todo este desmatamento e produção serve para manutenção do consumo em outros países (milho, soja, algodão, carne)?
Realmente, mais de 70% das emissões do mundo advém de energia, na média histórica, nos últimos 30 anos, e no Brasil, nesse mesmo período, a emissão de gases advém principalmente de desmatamento, mais de 50%. Em segundo lugar, vem a agricultura, que juntos dão cerca de 70% das nossas emissões históricas nas últimas décadas. A gente tem um caminho e ele vem funcionando para como cobrar o Brasil e até os setores, as empresas, a realizarem mudanças que vão impactar em uma diminuição de emissão desses setores. Então temos, por exemplo, a moratória da soja, que funciona desde 2006, existiu também um ensaio da moratória da pecuária. O próprio governo, em alguns momentos da nossa história, conseguiu reduzir o desmatamento. Teve uma pressão internacional, e nacional também, de mercados (detalhe que a pressão de mercados é sempre name and shame, é uma pressão que precisa expor os agentes para que eles tomem uma medida concreta de regular sua cadeia produtiva, diminuir emissões, não se vincular ao desmatamento). Eles não fazem isso apenas por boa vontade, ou pressão política, é necessário que eles enxerguem um provável prejuízo, um risco aos seus negócios. Ainda é assim, na grande maioria das cadeias de produção, é necessário impor uma pressão muito significativa financeira, mas essa pressão é a que vai começar a trazer efeitos. Principalmente a do consumidor, que traz efeito mais rápido e imediato, seja o consumidor político, na hora do voto, seja o consumidor do produto. Agora, mostrar também o prejuízo que as mudanças climáticas e o desmatamento trazem ao país etc, adianta em tempos normais. Quando temos um governo que olha para o país, que vê que essas pautas podem trazer prejuízo se elas não forem colocadas no rumo correto, prejuízos para o país, para a economia. Um governante que se importe com o país, com a economia, e que comece a tomar atitudes. Não é o caso do que temos agora. Nós temos um governo cujo presidente não governa para o país, mas sim usa o país para ele. Ele não senta na cadeira da presidência da república para prestar um serviço ao país. Ele coloca a cadeira a serviço de seus interesses, para ganhar as eleições, dar um golpe, reduzir a democracia, colocar e perpetuar o seu bando e a sua família no poder etc e tal. Então, o que precisamos hoje, na verdade, é mudar essa mentalidade que tomou conta do país, para que possamos retomar essa agenda de pressão, em que tanto os mercados, quanto os governos, sejam pressionados a irem para um rumo correto. Nós hoje estamos na contramão e temos um governo que inclusive leva parte do mercado e do país para o rumo errado. Tem como fazer, mas no Brasil atual é muito difícil.
Nós temos sempre o chamado do Brasil ser uma liderança. Isso pode causar dentro da agenda de clima um efeito positivo, inclusive econômico, para o país, para setores da economia etc, mas a gente tá longe, são dois mundos diferentes e um atrapalha o outro. Hoje, nós estamos tentando não retroceder. A discussão não é ser líder, mas sim perder de menos, e nessa situação não conseguimos fazer o debate de como posicionar o país para ser líder, porque estamos indo em outro rumo. Então, nós vamos precisar fazer uma correção dupla: primeiro colocar o Brasil no rumo correto, e aí ter uma agenda de liderança, de sucesso… Mas nosso caminho será longo.
Apesar de todo o alvoroço ambientalista com a eleição do Biden, após 6 meses de governo Biden, alguma medida significativa foi tomada, além de voltar ao acordo de Paris?
A importância dos Estados Unidos é muito grande, já que o país é o maior emissor da atualidade e também histórico. Cobrá-los e pressioná-los continua fundamental. Mas precisamos reconhecer que tivemos ações concretas deste governo. Por exemplo, eles pararam o oleoduto de Keystone, que era uma estrutura para combustíveis fósseis. Tem um investimento sendo feito, a indústria automotiva, o governo americano melhorou a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), chamou aquela cúpula em abril, que foi um momento importante já que reuniu países como Canadá, Coréia do Sul, apresentando melhoras em suas NDCs, e foi um esforço do governo americano para que esses países apresentassem. Tiveram reuniões com o governo chinês, que não fez muita coisa, mas falou no evento, deu sinais… Uma coisa muito fraca ainda, mas que aconteceu, eles chamaram e fizeram alguma coisa acontecer ali. Precisa de muito mais, mais ambição inclusive no que os Estados Unidos vão fazer, nos números que eles estão apresentando em termos de NDC, e é preciso que os EUA atuem em questões chaves como a criação do fundo, de 100 bilhões de dólares por ano, para promover a transição de carbono em países em desenvolvimento e países pobres, inclusive para adaptação. Então, eles fizeram coisas importantes, mas há muito para ser feito ainda. Agora, sem os EUA fica muito difícil pensar em soluções climáticas. Nós vamos precisar deles com tudo, envolvidos, fazendo coisas concretas. Por exemplo, dentro das negociações de clima, esse fundo global é fundamental. Sem ele fica difícil manter viva, aquecida, a própria negociação, porque os países em desenvolvimento cobram muito esse investimento dos países ricos.
Qual o papel dos municípios e das cidades na agenda climática, sendo que parte significativa das emissões brasileiras estão em esferas políticas estaduais e federais (transporte, energia e agricultura)?
As cidades têm um papel muito importante. As mudanças climáticas vão bater nos municípios e nas administrações municipais. Imagine o seguinte: supondo que nós temos um cenário indesejado de aumento da seca no semiárido brasileiro, principalmente no nordeste do país, em que se pode perder algumas áreas de agricultura de subsistência. Então, existem famílias que vão perder a capacidade de viver naquele lugar, vão migrar para outros centros urbanos, de forma justa, todos nós faremos isso, para procurar melhores condições de vida, e vão pressionar ainda mais os serviços públicos (transporte, emprego, moradias, saneamento, educação). É nesse nível municipal que as mudanças climáticas vão acabar acontecendo. Temos prefeitos cientes disso, lembrando que o prefeito não é um cargo perpétuo, ele muda com frequência, mas cria essa cultura de que as mudanças climáticas podem inclusive inviabilizar a qualidade de vida de algumas cidades, de algumas regiões do país; pode, inclusive condenar algumas cidades e regiões, torná-las sem capacidade para sobreviver com sua população. Isso é extremamente importante, porque coloca esses agentes públicos em ação, o que causa uma repercussão política fundamental, que é a pressão que vem de baixo para a decisão inclusive do governo federal, de empresas, que tomam decisões a nível nacional.
Os prefeitos também podem buscar algumas iniciativas, como energia solar ou outras alternativas de energia para transporte público. Existem várias opções, é um campo muito amplo e buscar financiamentos internacionais, até mesmo doações internacionais, para implementação de infraestrutura, de soluções climáticas que melhoram a condição de vida da população local. Isso existe e, inclusive, é feito em vários municípios, em vários locais. Nós [do Observatório do Clima] temos na rede mesmo uma ONG que trabalha as questões de clima em comunidades em Porto Alegre e eles conseguiram dinheiro de financiamento para instalar painéis solares em escolas na cidade. A instalação é feita por pais de alunos que estão desempregados, o que gera ali toda uma situação que tem uma repercussão social. A Prefeitura está nesse bolo, várias ONGs… E eles estão instalando em uma, duas, dez.. Quando chegar a 20 escolas, isso daí vai gerar uma economia na conta de luz da cidade. A mesma coisa pode ser feita para o transporte público urbano, como ônibus elétricos, que diminuem muito o custo do próprio transporte público, isso pode impactar na redução ou no não aumento da tarifa de ônibus nos municípios. Então, tem vários estudos que demonstram que alguns destes pontos são fundamentais e benéficos para a população, e os prefeitos têm capacidade e podem agir dentro dessa agenda, implementando ações que vão trazer benefícios para o seu município e, ao mesmo tempo, melhorar a questão do clima. Nós acabamos de lançar o SEEG – soluções para municípios, que tem um cardápio enorme de possibilidades e oportunidades para os prefeitos. (acesse em www.seeg.eco.br)
Quais medidas devem ser tomadas agora – pelo Estado, sociedade civil e população – para que tenhamos um vislumbre de futuro com menos impactos ambientais?
A primeira medida que precisamos é ter governo. Atualmente, nós não temos governo federal que atue para o país, mas sim pessoas que atuam para si e para os desejos do presidente. Então, sem governo é difícil, mesmo porque as negociações da ONU acontecem muito dentro desse cenário, de nações, tomando decisões. O governo federal é fundamental, para posicionar o Brasil, para tomar decisões, para desencadear as ações. Hoje nós não temos isso. Essas soluções para o país, teremos que fazer em dois turnos, e daí serve para o governo federal, a sociedade civil, população, todo mundo de forma geral. A primeira coisa é desfazer tudo que foi destruído ou recobrar a destruição causada pelo governo. Por exemplo, o pacote de incentivos para madeira ilegal e exportação desses materiais, o pacote de incentivos para grilagem de terra. Nós vamos ter que desfazer isso, os decretos, a instrução normativas, temos que desfazer. Projetos de lei facilitando grilagem de terras para o Congresso, ou abertura de áreas indígenas, na mudança de governo nós teremos que retirar esses projetos de dentro do Congresso, não deixar eles serem votados ou garantir que eles sejam vetados caso aprovados. Nós vamos ter que recobrar a capacidade do IBAMA e do ICMBIO de combater crime ambiental, destravar Fundo Amazônia, começar a cobrar multa ambiental de novo no país. Então tem uma série de coisas, umas cem medidas, pelo menos, que vão ter que ser tomadas para desfazer os problemas criados pelo Governo. A outra área que teremos que trabalhar é no avanço de políticas positivas, como pacotes de incentivo às energias renováveis. Teremos que criar políticas de incentivo novas, que pararam de ser debatidas com o governo Bolsonaro, que inclusive anunciou dois pacotes, a MP da Eletrobrás, que obriga o Brasil a contratar térmicas a gás, e agora tá lançando um novo pacote de 20 bilhões de reais, destinados a energia fóssil. Isso tem que parar, e teremos que tomar o rumo positivo, que é de energias renováveis. A mesma coisa para o desmatamento, nós teremos que ter de novo um pacote de políticas contra o desmatamento, um plano de redução, já que estamos em 10 mil km hoje. Teremos que ter um plano que entregue em um ano 8, no ano seguinte 7, e no outro 6.. até chegarmos em 4, 3 mil. Um plano de curta duração, para que a gente consiga um dia chegar em uma política de desmatamento zero. A gente vai precisar refazer a NDC do Brasil. E várias dessas soluções, ou desses rumos, estão dentro da NDC que nós, Observatório do Clima, escrevemos dentro do set de soluções, que foi apresentado em X de agosto. Nós vamos precisar escrever um pacote juntando essas coisas, e mais outros especialistas, para criar um pacote pós-Bolsonaro, de retomada do Brasil, dentro desse campo de clima. O país tem capacidade de ser carbono negativo, que captura mais carbono que emite. Então imagine um país do tamanho do Brasil, com nossa importância econômica, adotando esse tipo de agenda. Carbono negativo, um país que é uma solução para o clima, que resgata o problema, que arquiva e estoca o problema que o mundo ainda está se debatendo para neutralizar. É muito possível fazer isso no Brasil, nós temos capacidade em seus biomas, em seus recursos naturais, de virar um país carbono negativo. Nós precisamos desenhar essa agenda, nós do Observatório do Clima já estamos pensando nisso, e depois colocar os passos para implementação. E também fazer Campanha, para que outros governos implementem isso. Mas isso tudo só é possível se mudar esse governo que está no poder.