A Favela do Moinho e o Direito à Cidade

Polícia na favela: Moinho de vidas

Para além do que ocorreu na Favela do Moinho,
é importante falar sobre as mortes nas favelas fomentadas pelo Estado.
Pra que um dia possamos falar com tranquilidade sobre toda a vida cotidiana que acontece nela.
Entre becos e vielas, o Estado é o algoz, que primeiro mata e depois pergunta.
A justificativa vem sempre em nome das guerras às drogas.
Guerra essa que só mata Cláudias, Luanas, Amarildos e Leandros.
Mata suas mães, as almas e os sonhos de quem por um triz escapou de estar ali
Deitado.
Martelado
Torturado
Arrastado
Desaparecido
Ou encarcerado.
A violência e truculência a que são submetidos os moradores de favela é desproporcional, anti cidadã e criminosa.
E não há nada que a justifique. O silêncio que ecoa na sociedade sobre esses casos é ensurdecedor.
Não podemos mais tolerar o moer de vidas negras.

Jéssica Tavares*

 

A Favela do Moinho e o Direito à Cidade

A ação do último dia 27 de junho trouxe à tona a rotina de violações de direitos sofridas nas favelas

A Favela do Moinho tem mais de 25 anos e, há pelo menos dez, a Prefeitura de São Paulo tem atuado de maneira a violar sistematicamente os direitos de seus moradores. A área, que pertencia a duas empresas privadas, foi leiloada em 1999 para pagar dívidas de IPTU. Anos depois, em 2007, o governo municipal entrou com uma ação para adquirir o terreno da favela com o objetivo de remover as mais de mil famílias que já ocupavam aquele local.  Em 2008, a associação de moradores, a Defensoria Pública do Estado e o Escritório Modelo da PUC de SP entraram com pedido de usucapião coletivo, que foi acatado e permitiu que as famílias seguissem vivendo ali. Entre 2011 e 2012, dois grandes incêndios destruíram dois terços da favela, ocasionando mortes e centenas de desabrigados.

A presença do Estado tem sido constante no Moinho, não para prover as necessárias infraestruturas ou para dialogar e construir alternativas habitacionais para as famílias, mas para oprimir ostensivamente seus moradores através de ações da Polícia Militar (PM) sob a justificativa da segurança pública.

No dia 27 de junho de 2017, ocorreu mais uma incursão violenta da PM. Desta vez, sob a alegação de que o local é um entreposto para o tráfico de drogas que abastecem os usuários de crack da região. A PM, sem um mandado, entrou na favela e matou um adolescente de 18 anos, Leandro de Souza Santos, que correu da polícia e se abrigou em uma das casas. Segundo a Ponte Jornalismo, a PM perseguiu o jovem, cercou a residência em que ele se escondeu e exigiu que a proprietária se retirasse. Entre relatos de policiais que sustentam a versão de que houve confronto e moradores que dizem que Leandro foi torturado e assassinado, fato é que Leandro foi morto por cinco (!) tiros, e teve seu corpo claramente torturado e ferido.

Após a ação violenta, os moradores protestaram nas ruas da região. Novamente a PM agiu de forma desproporcional e disparou uma bomba de efeito moral contra os manifestantes. Segundo o portal G1, um jovem manifestante foi preso por correr dos policiais.  Ninguém foi preso por tráfico de drogas.

Ao que tudo indica, este tipo de ação policial violenta não será a última a ocorrer na Favela do Moinho. Segundo a Folha de São Paulo, o tenente-coronel Miguel Daffara afirmou que outras incursões semelhantes serão recorrentes no local.  Esta mesma reportagem afirma que a remoção total da Favela do Moinho configura atualmente uma das prioridades da prefeitura sob a alegação de que é preciso “sufocar o fluxo de usuários.”

Este histórico de ações evidencia diversas violações do Direito à Cidade que precisam ser debatidas. Questões como o extermínio da juventude negra, a violência policial, a política nociva de remoção de favelas e a marginalização física e social da população de baixa renda são recorrentes nas políticas para as áreas com maior vulnerabilidade social. São raros os casos onde se discutem a urbanização de favelas e a melhoria de serviços públicos nesses locais.

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Regularização vs. Remoção

O dilema entre regularizar ou remover a Favela do Moinho tem sido constante. Diversas estratégias têm sido usadas para removê-la. Desde ações de despejo até incêndios de natureza duvidosa marcam a história daquele assentamento.

A gestão passada havia prometido urbanizar e regularizar a área, mas não efetivou a proposta. A gestão atual tem se posicionado no sentido de remover a favela integralmente, ainda que os moradores tenham protocolado, em 2008, uma ação coletiva de usucapião que foi acatada pela 17ª Vara Federal de São Paulo e atualmente aguarda por julgamento para ser legitimada.

Na prática, isso significa que, enquanto o processo não for concluído, os moradores têm o direito de permanecer na área.

Provisão Habitacional distante do local original de moradia

Em 2013, a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado firmaram uma Parceria Público Privada (PPP) para construção de moradias populares em um terreno na área da Luz, a 800 metros da favela, e que não destinava sequer uma unidade às famílias da Favela do Moinho. Segundo a Folha, o Governador Geraldo Alckmin mencionou aos moradores do Moinho que há um conjunto habitacional sendo construído a 12 km da favela e que poderia ser oferecido aos moradores. Como exemplo isso significa que os moradores sairiam da região de Campos Elísios, no centro de São Paulo, e iriam para regiões como a da Vila Guilhermina, na Zona Leste, ou do Jabaquara, na Zona Sul. Esta proposta contraria os objetivos do Plano Diretor de São Paulo (PD) de aproximar oferta de moradia em locais de oferta de emprego e fere o direito à moradia em local próximo à moradia original.

Além disso, será que a propriedade privada é a única forma de atendimento habitacional para essas famílias?  Como aponta Simone Gatti no especial do Le Monde sobre a Cracolândia, a extrema vulnerabilidade das famílias residentes na região permite a implementação do Serviço de Moradia Social, previsto tanto no Plano Diretor como no Plano Municipal de Habitação, e que pressupõe a provisão de um parque público de moradias para locação social. A criação desse parque poderia, inclusive, reabilitar os inúmeros edifícios vazios da região central que não estão cumprindo com sua função social. Tal estratégia garantiria que a população de baixa renda resida na região central de forma ampla e estruturada promovendo não só o direito à moradia, mas também à cidade.

A “Guerra ao Crack”, a Renovação Urbana e o Direito à Cidade

Desde 21 de maio, a PMSP e o Governo do Estado têm atuado de forma violenta na região da Luz. As ações foram desastrosas nos campos  da saúde mental, do trabalho social, do urbano e principalmente no sentido humano. Talvez uma das maiores evidências do despreparo do poder público tenha sido a demolição de um edifício em que ainda havia moradores e que acabou ferindo três deles. Estas ações tiveram como discurso erradicar a venda e o consumo de crack na região e é este mesmo discurso que “legitimou” a ação da PM na Favela do Moinho.

É notável que desde os anos 2000 a região central vem passando por um processo de especulação imobiliária. A implantação da Sala São Paulo e do Museu da Língua Portuguesa, por exemplo, revelam um modelo de renovação urbana que, embora traga novos equipamentos culturais para a cidade, se revela altamente excludente. Outro exemplo, o Projeto Nova Luz, combatido pelos moradores, comerciantes locais e movimentos sociais desde sua proposta inicial em 2005, foi ressuscitado pela atual gestão, deixando evidente que são as lógicas de mercado que estão ditando as regras do jogo na produção dos espaços da cidade. Essa proposta de intervenção imobiliária (e não urbanística!)  não dialoga, nem contempla as necessidades da população local.

Ao passar por cima de normativas e impedir que a população se manifeste e participe de decisões importantes, como qual intervenção se deseja para a Favela do Moinho por exemplo, a gestão municipal viola direitos e promove o inverso do que é preciso para efetivar o Direito à Cidade. O direito de produzir, ocupar, usufruir, participar e governar a cidade é um princípio fundamental que deve ser defendido e exercitado. Ações arbitrárias como a que se assiste na Favela do Moinho ou na região da Luz só se justificam quando o Estado, em vez de se alinhar à perspectiva da cidade como espaço e como meio da efetivação de direitos, está comprometido com os interesses do mercado e suas lógicas de produção da cidade.

Violência Policial e o Genocídio da Juventude Negra

Assim como tantos outros, o Direito à Cidade ainda não está garantido de forma igualitária a todos os que vivem nas cidades. Local da moradia, gênero, orientação sexual e raça são características que ainda distinguem o nível de acesso de cada cidadão aos bens, serviços, bem como aos espaços políticos da cidade. Também são elementos determinantes do grau de fragilidade que cada sujeito se encontra em relação aos seus direitos. É patente que a juventude negra é um dos grupos cujo Direito à Cidade ainda não está plenamente garantido, sendo a violência policial um dos sintomas, e também um dos principais responsáveis, por esse tipo de violação. O Instituto Pólis insiste na urgência do debate sobre o extermínio da juventude negra que ocorre ao longo de toda história do Brasil, e que se agrava nas favelas e periferias.

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Publicações como o Atlas da Violência 2017, recente estudo realizado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, comprovam o que os movimentos negros já denunciam há anos: o modelo de segurança pública atual é seletivo, encarcera em massa e executa a juventude negra brasileira. Mudar essa realidade é uma questão urgente.

Por isso, um dos grandes desafios para a efetivação do Estado de Direito é o fim do atual modelo de atuação policial. Os números mostram que os incidentes de mortes decorrentes de intervenção policial ultrapassaram o de latrocínio (roubo seguido  de  morte). Nossos mortos são cada vez mais jovens. Entre 2005 e 2015, observou-se um aumento de 17,2% na taxa  de  homicídio  de  indivíduos  entre  15  e  29  anos. O recorte de gênero e raça é imprescindível para o debate público sobre segurança pública, especialmente ao tratarmos  do crescimento de homicídios da juventude.

O direito de ter direitos na cidade

Questionar as práticas violentas de ação do Estado, sejam elas através da polícia ou de projetos urbanos autoritários e mercadológicos, é um exercício democrático necessário, sobretudo em tempos em que o Estado de Direito se vê tão ameaçado por golpes e ações autocráticas, as quais ainda são revestidas por um marketing político que esconde o progressivo distanciamento entre os espaços de decisão da cidade e seus cidadãos. Persistir na construção de uma cultura de participação e de proposições coletivas, assim como no fortalecimento das arenas de debate e decisão sobre como os governos devem agir em situações tão complexas e delicadas é só um dos passos para reconhecer que, na cidade, todos têm direito de ter direitos.

Colaboraram neste texto

  • Felipe Moreira, arquiteto e urbanista da equipe de Urbanismo do Instituto Pólis
  • Vitor Coelho Nisida, arquiteto e urbanista da equipe de Urbanismo do Instituto Pólis
  • Jéssica Tavares, gestora de políticas públicas da equipe de Urbanismo do Instituto Pólis e do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)

Fotos

  • Mídia Ninja/Jornalistas Livres