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PPP da Habitação: muitas perguntas ainda sem respostas

22/09/2014

Por Simone Gatti*

Um assunto aparentemente esquecido, que foi questionado judicialmente e também pela sociedade civil, parece estar voltando à tona: a  parceria público-privada para construção de habitação no centro de São Paulo, promovida pelo programa Casa Paulista do Governo do Estado, em parceria com a Prefeitura. Na semana passada, a secretaria estadual de habitação anunciou à imprensa que o edital de licitação da PPP da Habitação, como vem sendo chamada, poderá ser lançado até o final deste mês.

À reportagem do Estadão, o secretário estadual de habitação Marcos Rodrigues Penido explicou que o projeto será dividido em duas etapas, iniciando com 14 mil unidades (ao invés das 20 mil anunciadas inicialmente), devido à dificuldade de se obter terrenos adequados no centro. Parece que a PPP está andando, mas a sociedade e os reais impactados pela intervenção não estão, mais uma vez, participando do processo.

Além disso, a aprovação do novo Plano Diretor aponta novos desafios sobre a modelagem da PPP, já que as regras sobre a ocupação dos perímetros de ZEIS mudaram, ampliando os percentuais mínimos obrigatórios para as famílias com renda abaixo de 3 salários mínimos. Assim, cabe a pergunta: a modelagem financeira original da PPP poderia se manter no novo cenário apresentado pela revisão do Plano Diretor?

Certamente, não, dado que, para atender um maior número de famílias com renda inferior a 3 salários mínimos (lembrando que 60% das áreas demarcadas como ZEIS 1, 2, 3 e 4 devem ser destinadas a esta faixa de renda), ou os subsídios públicos deveriam ser ampliados ou os ganhos do empreendedor privado deveriam ser reduzidos substancialmente. A não ser que a estratégia do novo Plano Diretor de adquirir um banco de terras público, via recursos do Fundurb, das Operações Urbanas Consorciadas, da Cota de Solidariedade ou dos instrumentos de acesso à terra, fosse agora inserida na lógica da PPP, reduzindo assim os custos com a compra de terrenos, que é um dos itens mais caros da viabilização dos empreendimentos habitacionais para os grupos de baixa renda.

Na matéria do Estadão, o secretário estadual de habitação afirma que 80% dos terrenos envolvidos já são públicos, cenário muito diferente do visualizado anteriormente, quando da publicação, pelo governo do estado, de um decreto de desapropriação de cerca de 900 imóveis. Teríamos então uma PPP atuando somente sobre áreas públicas, possibilitando assim o barateamento das construções e sua destinação para as famílias de rendas mais baixas?

O novo Plano Diretor aponta também a obrigatoriedade de uma revisão participativa do Plano Municipal de Habitação em até 12 meses. Mas a proposta da PPP, que interfere no cerne das políticas habitacionais para o Centro ao se propor a atuar sobre grande parte do estoque de ZEIS, não foi formulada no âmbito de um plano habitacional abrangente para a cidade e não contou com a participação dos segmentos sociais interessados no tema. Como seriam reformulados os canais de interação social da PPP após a contestação judicial feita pelo Ministério Público diante da falta de participação popular e da não formação dos Conselhos Gestores de ZEIS? E como se daria seu planejamento no contexto da política habitacional municipal?

A PPP do Governo do Estado, à qual a Prefeitura de São Paulo aderiu, da forma como foi proposta originalmente, vem reproduzir os mesmos caminhos da política habitacional federal ao se utilizar de um único programa, o Minha Casa Minha Vida, como solução para o complexo problema da precariedade habitacional do centro.

Avanços como a formatação da Política Nacional de Habitação (2004), do Sistema Nacional de Habitação (2005) e do Plano Nacional de Habitação (2008), construídos para o enfrentamento do déficit habitacional brasileiro a partir da identificação das particularidades regionais, da diversificação das propostas de atendimento e do planejamento participativo como condutor das políticas habitacionais, estão sendo substituídos por uma ação simplista pautada no desenvolvimento dos setores imobiliários e da construção civil, que não considera sobretudo que o modelo da propriedade privada não é a solução para as famílias de baixíssima renda, responsável por mais de 90% do déficit habitacional brasileiro.

Histórico – Em abril do ano passado, após o anúncio do projeto da PPP da Habitação, movimentos de moradia, organizações não governamentais, defensores públicos e urbanistas se reuniram para debater a proposta. Esta mobilização resultou em uma Carta Aberta destinada aos gestores do projeto e em uma contribuição à consulta pública do edital da PPP. O assunto foi também objeto de uma detalhada reportagem do projeto Arquitetura da Gentrificação.

A PPP da Habitação do Centro objetivava inicialmente construir 20 mil moradias, que seriam viabilizadas com recursos privados, subsídios federais do Programa Minha Casa Minha Vida e recursos complementares dos governos estadual e municipal. A Prefeitura de São Paulo concederia um aporte de R$ 20 mil reais por unidade habitacional.

Aquilo que a princípio parecia o melhor dos mundos – um projeto que reunia todos os consensos do bom urbanismo (incluindo quadras abertas, ruas sem muros, comércio nos térreos, mistura de classes sociais etc.) aliados à necessidade emblemática de ocupar as áreas subutilizadas do centro da cidade com habitação social – foi se revelando com sérios entraves à gestão democrática da cidade e ao atendimento às famílias de baixa renda frente ao déficit habitacional do município. Os principais problemas identificados foram:

  1. Das 20.221 unidades habitacionais ofertadas pela PPP, apenas 6.650 seriam destinadas às faixas de menor renda, excluindo ainda as famílias com renda inferior a 1 salário mínimo, e apenas 20% de todas as habitações ofertadas seriam destinadas a moradores da área central. Considerando os dados do Plano Municipal de Habitação de 2009, que apontam a existência de 21.810 domicílios em situação precária na região central ocupados por famílias com renda de até 3 salários mínimos (sendo 10.724 domicílios em favelas e 11.086 cortiços), a proposta da PPP não priorizou a real demanda de subsídios públicos para o acesso à moradia.
  2. O projeto da PPP apresentou absoluta omissão à gestão participativa das ZEIS. A legislação aponta a obrigatoriedade da formação de Conselhos Gestores em ZEIS 1 e 3 para desenvolver, aprovar e acompanhar a implantação dos respectivos Planos de Urbanização;
  3. Grande parte do estoque de ZEIS 3 estaria sendo consumido por uma única modalidade de política habitacional, que é a aquisição de moradia com transferência da propriedade, através do Programa Minha Casa Minha Vida,  inviável para a maior parte da população de baixa renda que vive precariamente nas áreas centrais.

Meses após o lançamento do projeto, o governador Geraldo Alckmin assinou o Decreto nº 59.273, que declarou de interesse social para fins de desapropriação mais de 900 imóveis na região central. Elencados a partir de projeto elaborado pelo Instituto Urbem (a partir dos seis setores localizados em áreas centrais, conforme mapa acima), responsável pela modelagem urbanística e financeira da PPP, estes imóveis cederiam lugar às habitações do projeto. Mas um mapeamento realizado por moradores das regiões atingidas pelo decreto mostra que apenas 85 destes imóveis estavam vazios ou subutilizados e que 86% estavam ocupados.

O processo de abertura da licitação foi paralisado em agosto de 2013 por uma Ação Civil Pública emitida pelo promotor Maurício Ribeiro Lopes, que alegou a falta de participação popular e a não formação dos Conselhos Gestores de ZEIS. Após a revogação da liminar, dois meses depois, o projeto foi retomado e, logo em seguida, paralisado pelo próprio Governo do Estado, que anulou o decreto sob a justificativa da tramitação na Câmara Municipal do PL da revisão do Plano Diretor, que alteraria as condicionantes das desapropriações de utilidade pública.

Com a revogação do decreto de desapropriação, o edital previsto para ser lançado em novembro de 2013 foi suspenso e o assunto foi aparentemente esquecido. O novo Plano Diretor foi aprovado sem que o Governo do Estado tenha se manifestado sobre as interferências do texto no edital da PPP. Contudo, em junho deste ano, o prefeito Fernando Haddad sancionou a Lei Nº 16.006, que permite aporte municipal para o Programa Minha Casa Minha Vida para ser utilizado juntamente com os recursos do programa Casa Paulista. Na sequência, a Secretaria Municipal de Habitação convocou o Conselho Municipal de Habitação para a criação de um Grupo de Trabalho para debater ‘Demandas/Critérios Municipais para o Programa Minha Casa Minha Vida – MCMV – e de Acompanhamento do Programa Casa Paulista’.

Diante da notícia do lançamento do edital de licitação da PPP, parece crucial que o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal se posicionem frente aos inúmeros questionamentos já apresentados pela sociedade civil e às novas questões que surgiram após a aprovação do Plano Diretor. Com a revogação do decreto de desapropriação, quais são as novas áreas de intervenção? Quem são as famílias impactadas e beneficiadas pela nova modelagem? Os Conselhos Gestores das ZEIS serão formados como determina a legislação? Como será garantida a permanência dos atuais moradores e a inclusão dos mais pobres? São, de fato, muitas perguntas… ainda sem respostas.

*Simone Gatti é urbanista e contribuiu com o Movimento pelo Direito à Cidade no Plano Diretor durante seu processo de revisão.

Fonte: observaSP