Patrimônio,
Memória &
Diversidade
Um olhar
antirracista sobre
os monumentos
da cidade de
São Paulo.
Que histórias as cidades nos contam?
O debate sobre a representatividade das diversidades sociais no espaço público – o que inclui sua produção intelectual artística, cultural, religiosa, ancestral – é fundamental para entendermos que as vivências de grupos historicamente subalternizados são relevantes para o espaço urbano. Enunciar, valorizar e proteger sua memória é um dos elementos constitutivos para o exercício do direito à cidade. Para pensar e construir cidades justas, educadoras, antirracistas e sem discriminação, propomos uma pergunta como ponto de partida: que histórias as cidades nos contam? A seguir, abordamos o conjunto de monumentos oficiais do Município de São Paulo para tentar lançar respostas e provocações a partir dessa pergunta.
Quem os
monumentos da
cidade retratam?
Dos 377 monumentos da cidade de São Paulo, 53 são símbolos (14%), 50 são objetos (13%), 26 representam figuras religiosas e mitológicas (7%), 16 são datas comemorativas (4%), 9 são de outros tipos de figuras (2%), 13 não foram identificados (3%) e 210 (56%) são monumentos a pessoas.
Para cada monumento que homenageia pessoas negras, existem 13,4 monumentos a pessoas brancas
Pessoas negras, indígenas e mulheres estão sub-representadas. Das 210 obras, 155 representam pessoas brancas (74%), 12 são negras (5,5%), 12 são asiáticas (5,5%), 4 são indígenas (2%) e 9 retratam várias raças (4%). 18 não tiveram a raça/cor identificada (9%).
Para cada monumento que homenageia pessoas indígenas, existem 40 monumentos a pessoas brancas
Para cada monumento que retrata uma figura indígena, existem 40 que representam pessoas brancas. Nenhuma obra que retrata pessoas indígenas corresponde a pessoas reais: todas retratam personagens genéricas ou fictícias que reiteram estereótipos racistas reproduzidos pela branquitude.
Para cada monumento que homenageia mulheres, existem 8,7 monumentos que retratam homens
A diferença mais gritante está na comparação por gênero: monumentos a homens correspondem a 83% do total, enquanto mulheres são homenageadas por 9% das obras (os dois gêneros estão presentes em 8%).
A população preta e parda da cidade de São Paulo representa cerca de 37% do total, mas os monumentos que homenageiam pessoas negras correspondem a apenas 5,5% das obras que representam figuras humanas. A população branca, que é 60% da população paulistana, se vê em 74% dos monumentos.
As homenagens a mulheres, além de menos numerosas, são mais genéricas do que as dedicadas aos homens. Das 20 obras, apenas 10 homenageiam nominalmente mulheres, o que corresponde a 50% das obras erguidas a figuras femininas. Essa proporção, no entanto, é significativamente maior entre homens: dos 174 monumentos que retratam figuras masculinas, 145 se dedicam nominalmente (83%)
A desproporcionalidade também é observada nas autorias dos monumentos: cerca de 65% das obras foram concebidas por artistas homens e somente 9,5% por artistas mulheres.
O restante não teve a autoria identificada, mas mesmo que fossem todas femininas (uma suposição pouco provável), a desigualdade de gênero se manteria, pois a grande maioria das obras ainda seria criação de artistas homens.
A participação limitada de artistas mulheres é ainda pior dentre aqueles monumentos que, justamente, homenageiam figuras femininas: do total de 20 obras, 16 foram feitas por artistas masculinos (80%).
A mesma incongruência é vista nas obras que retratam pessoas não brancas: homens brancos assinam a autoria dos 4 monumentos a indígenas e de 5 monumentos que representam pessoas negras (do total de 12).
Monumentos
Controversos
Há um número expressivo de obras que homenageiam figuras controversas: 48 monumentos (23%) são dedicados a personagens históricos cuja imagem enaltece memórias opressoras, exaltam episódios violentos e de extermínio de povos não brancos. Monumentos a Anhanguera, Anchieta, Duque de Caxias ou Borba Gato, por exemplo, continuam perpetuando imagens e valores construídos por grupos dominantes que fortalecem o apagamento sistemático de outras narrativas históricas.
Os monumentos controversos têm raça e gênero. Nenhuma representação presta homenagens a figuras femininas, enquanto 42 são dedicadas a homens (87%), quase todos brancos. O restante (13%) mistura figuras femininas e masculinas na mesma obra. Por um lado, os monumentos fazem parecer, erroneamente, que as mulheres não têm seu lugar na memória apagando-as da história contada por obras urbanas. Por outro, eles demonstram que a participação de homens em eventos históricos – supostamente definidores da nossa identidade – pode ser, no mínimo, controversa.
As controvérsias estão intimamente ligadas às relações de poder de domínio branco e patriarcal, mas também estão relacionadas à nossa incapacidade de rever e repensar a forma como construímos nossas identidades, como contamos nossas histórias, como reproduzimos narrativas hegemônicas e como produzimos e preservamos nossa memória, a qual continua exaltando homens brancos, mesmo quando sua biografia é definida por contradições e violências.
Onde estão os Monumentos?
Cerca de 51% da população da capital paulista mora em distritos que possuem, ao menos, um monumento, mas somente 33% vivem onde há algum monumento retratando pessoas.
Os monumentos apresentam um padrão territorial de forte concentração: na região central (distritos Sé e República) e na região do Parque Ibirapuera (distrito de Moema) – o que poderia ser considerado uma restrição do acesso a tais elementos da memória. Além de indicar a ausência de monumentos na maior parte da cidade, tal concentração também sugere que outros elementos artístico-paisagísticos que atuam na construção de memórias coletivas e narrativas históricas não são reconhecidos pelo poder público.
É questionável que a única região, fora do centro, a concentrar espacialmente um conjunto significativo de monumentos seja local de moradia da elite econômica. A concentração de obras nessas áreas não é fruto do acaso ou do descuido: é um projeto político que só concede o direito à memória para a elite branca da cidade, concentrando estátuas em seus territórios de privilégios.
Mesmo que a região central seja local de trabalho de milhões de pessoas e que concentre as principais conexões das infraestruturas de transporte da metrópole, é questionável que não haja tantos monumentos nas demais áreas da cidade, sobretudo as mais populosas. Muitas dessas áreas são regiões densas, de menor renda e/ou de maior participação da população negra.
Qual é o Porte dos Monumentos?
Quanto mais branca a obra, maior ela é (média de 3,4m). Quanto mais controversa a figura retratada, maiores as dimensões do monumento que a representa (média de 5,3m). Figuras negras e indígenas não apenas possuem muito menos obras na cidade como também são menores (2,2m e 2,8m): elas são 33% e 15% mais baixas, respectivamente.
As diferenças são ainda maiores, quando comparadas às dimensões dos monumentos em homenagem a figuras controversas, os quais têm 5,3 metros de altura média: 2,4 vezes maior que a altura média de monumentos negros e 1,9 vez maior que a média de obras que homenageiam indígenas. As mulheres, por sua vez, além de sub-representadas por terem quase 9 vezes menos obras do que os homens, são retratadas por monumentos cuja altura média é de 1,8 metros, 43% mais baixos que as obras de figuras masculinas (média de 3,2 metros).
Que histórias
estão por trás
dos monumentos?
Os monumentos cumprem a função de introduzir, impor, reproduzir e modelar narrativas. Não existe monumento vazio de conteúdo ou de intenção: todos eles são construções sociais politicamente concebidas (Corrêa, 2005). Cada monumento erguido na cidade de São Paulo é, portanto, retrato de seu tempo e espelha os grupos sociais que o propuseram, transmitindo seus valores e suas perspectivas sobre a história.
Os períodos propostos a seguir não representam uma divisão historiográfica definitiva e buscam, tão somente, provocar debates e reflexões sobre as relações entre patrimônio, memória, cultura, diversidade e representatividade, através da história.
A altura média das obras diminuiu com o passar das décadas. No último período, as estátuas de pessoas brancas passaram a ter a média de altura de 1,6 metros, enquanto as obras de pessoas negras, 2,0 metros. Contudo, figuras masculinas continuam mais pronunciadas: monumentos a homens têm média de 1,8 metros enquanto os de mulheres têm 1,4 metros de altura média.
Nos últimos anos, nota-se uma mudança de paradigma, seja com o aumento do número de figuras negras, seja pela maior participação de artistas negros e negras na autoria das obras. Além disso, houve uma mudança importante na forma como pessoas negras são retratadas: em vez de figuras sem nome e presas a estereótipos racistas, as homenagens passaram a ser direcionadas a pessoas específicas, como o monumento a Zumbi (2016), Tebas (2020) e Carolina Maria de Jesus (2022).
A parcela de monumentos controversos inaugurados tem diminuído significativamente a cada período.
Os monumentos inaugurados no período de formação das identidades brasileira e paulista (até 1980), registram a maior proporção de obras instaladas em áreas cujo entorno imediato é predominantemente ocupado por equipamentos públicos ou de uso institucional, de maneira que a visibilidade e contemplação destes monumentos são ampliadas dada às dinâmicas impostas por esses equipamentos.
Já no segundo período, saudosismo de um passado (in)glorioso (1980 a 2000), houve uma tendência de “residencialização”: 1 em cada 4 obras foram instaladas em áreas residenciais. Essa mudança, no entanto, não significou maior democratização, já que praticamente todas as obras foram alocadas em regiões de alto padrão.
No período de mudanças de paradigmas (após 2001), observa-se um aumento proporcional de monumentos em áreas com predominância de comércio e serviços, passando a ser de 51%. Essa proporção é de 22% no primeiro período e 25% no segundo. A tendência de alocar mais monumentos em áreas com grande fluxo de pessoas pode refletir um aumento de visibilidade, mas cabe o questionamento: mais pessoas passando pelos monumentos significa que eles serão mais notados?
Quais as diferenças
de visibilidade
e presença?
Os parques da cidade são dedicados quase exclusivamente à memória de pessoas brancas.
Dentre os 23 monumentos localizados em parques, 20 são homenagens a pessoas brancas (87%), apenas 1 compila mais de uma raça e outros 2 não tiveram sua raça determinada.
Diferentemente de parques ou canteiros e rotatórias, as praças apresentam um perfil, comparativamente menos branco e menos masculino:do total de 135 obras, 96 são dedicadas a pessoas brancas (71%). Ainda é uma porcentagem elevada, mas é possível observar que a participação de monumentos a pessoas negras e indígenas é mais relevante: 31% e 2%, respectivamente. Dos 20 monumentos que retratam mulheres na cidade de São Paulo, 15 estão em praças. Porém, essas 15 obras correspondem a apenas 11% do total de monumentos erguidos neste tipo de espaço, o que, novamente, aponta para uma desigualdade de gênero ainda mais profunda do que a racial.
Por sua inserção no tecido urbano e por sua relação com as dinâmicas da cidade, seria possível afirmar que as praças desempenham um papel mais cotidiano na vida das pessoas, sobretudo, aquelas que vivem e/ou trabalham no seu entorno, conferindo uma presença também mais cotidiana aos seus monumentos. Nesse sentido, é interessante pensar que imagens de figuras negras e indígenas, e até mesmo as poucas homenagens a mulheres, estejam povoando esse tipo de espaço, mesmo que em quantidades ainda muito insuficientes.
Monumentos em calçadas são a solução mais recorrente nos últimos anos. Das 11 obras que foram instaladas nesse tipo de espaço, 4 foram construídas no último período (após 2001), representando um crescimento considerável, passando de 4% no 1º período (1900-1980) a 14% nos anos mais recentes. Se por um lado, estão em áreas que garantem maior circulação de pessoas, por outro, podem mais facilmente passar despercebidas, porque tal circulação implica apenas a passagem de pedestres e não, necessariamente, a permanência apreciativa – especialmente pelo fato de monumentos em calçadas terem altura média menor (2,4 m).
Monumento em praça: Luiz Gama
Monumento em praça: Carolina Maria de |Jesus
Por sua inserção no tecido urbano e por sua relação com as dinâmicas da cidade, seria possível afirmar que as praças desempenham um papel mais cotidiano na vida das pessoas, sobretudo, aquelas que vivem e/ou trabalham no seu entorno, conferindo uma presença também mais cotidiana aos seus monumentos. Nesse sentido, é interessante pensar que imagens de figuras negras e indígenas, e até mesmo as poucas homenagens a mulheres, estejam povoando esse tipo de espaço, mesmo que em quantidades ainda muito insuficientes.
Monumentos em calçadas são a solução mais recorrente nos últimos anos. Das 11 obras que foram instaladas nesse tipo de espaço, 4 foram construídas no último período (após 2001), representando um crescimento considerável, passando de 4% no 1º período (1900-1980) a 14% nos anos mais recentes. Também são espaços mais acessíveis, propícios ao contato e aproximação com as obras. No entanto, estão mais sujeitas à interferência dos outros elementos que compõem o espaço (como edifícios ou pontos de ônibus, por exemplo). Se por um lado, estão em áreas que garantem maior circulação de pessoas, por outro, podem mais facilmente passar despercebidas, porque tal circulação implica apenas a passagem de pedestres e não, necessariamente, a permanência apreciativa – especialmente pelo fato de monumentos em calçadas terem altura média menor (2,4 m).
Monumento em calçada: Marighella
Monumento em calçada: Fotógrafo de lambe lambe
Afinal, que
histórias as cidades
nos contam?
O curso Que histórias as cidades nos contam? realizado pela Escola da Cidadania teve como objetivo discutir o direito à memória na cidade ao longo de 6 encontrosA proposta considerou a agenda política dos povos negros e originários por participação na memória pública, a dimensão educadora da cidade e o tensionamento narrativo proposto por atores individuais e coletivos sobre monumentos “controversos” em suas ações artísticas e (per)formativas. Confira os vídeos e os materiais de cada um dos encontros a seguir.
Encontro 1 Espaços de memória e a omissão da presença negra na cidade com Ana Barone.
Encontro 2 Monumentos: fragmentos de histórias vividas e imaginada com Giselle Beiguelman.
Encontro 3 Educação Patrimonial e a dimensão educadora da cidade com Abílio Ferreira e Cássia Caneco.
Encontro 4 Políticas públicas e o direito à memória com Luana Alves.
Encontro 5 Como avançamos no debate – Mapeamento colaborativo com Grupo de Pesquisa: Patrimônio, Memória e Diversidade do Instituto Pólis. (Cássia Caneco, Lara Cavalcante, Maria Gabriela Feitosa e Vitor Nisida).
Encontro 6 Saída com o Cartografia Negra.