“Campos Elíseos, 14hs da tarde de um dia de outono. Caminho pela Av. Rio Branco avistando ao fundo a cavalaria da Polícia Militar intimidando famílias que moram numa ocupação. Ninguém sabia, mas era dia de reintegração de posse.
Ela havia sido marcada e combinada com xs moradorxs para dali a dois dias. Mas a eficiência do Estado, quem diria, antecipou a mudança e pegou todo mundo de surpresa.
Chego à porta da ocupação e a vejo praticamente esvaziada de seus moradores. No chão do primeiro cômodo, alguns móveis, pedaços de madeira, fios e fotos que ficaram pelo caminho. Por de trás da porta a minha frente, surge uma criança com um boneco de heroi na mão.
Eu a sigo e me deparo com um corredor de paredes demolidas e um microondas no chão. A criança se agacha e abre o microondas. Coloca gravemente o boneco e diz: é hora de fazer comida, papai.
Ela ainda não sabe mas hoje ela não tem mais onde morar. A angústia nos olhos do pai revelam tal condição. Subo as escadas e chego ao andar de cima. Mais escombros e mais uma criança tentando entender pra onde estão indo os móveis que até 1 hora atrás conformava o que ela chamava de casa. Ela se debruça na janela e vê homens vestidos de azul levando o sofá, a geladeira e outras memórias transportáveis pro caminhão baú.
Tento entender o que aquela cena significa pra ela mas não consigo. Saio da ocupação e converso com outrxs moradorxs, desta vez adultos, que estão revoltados e angustiados. Pra onde ir? Por que eles têm que sair? O que fazer?
Todos têm manifestações físicas da angústia: pra uns a pressão sobe, as pernas bambeiam, a boca seca. Outros emudecem e ficam com o olhar distante tentando encontrar uma solução em meio ao caos.
Eu converso com a oficial de justiça que executa a reintegração. Ela me diz que cumpre ordens. As casas devem sair para dar lugar a um hospital ainda sem projeto aprovado. O hospital é uma ideia, as casas eram fatos. Fatos supostamente amparados pela legislação municipal. Ali o Plano Diretor definiu como uma Zona Especial de Interesse Social, uma ZEIS, como dizemos os urbanistas. Um local onde a prioridade é produzir, manter e/ou regularizar moradias populares. Mas a justiça brasileira, seletivia, patrimonialista e elitista, preferiru não aplicar esta lei municipal.
Tão pouco a Lei Federal que diz que, quando se demarca uma ZEIS, é preciso formar um conselho gestor com moradores, entidades, comerciantes locais e poder público para, juntos, definir os projetos para a área. Nenhuma dessas decisões passou pelo conselho, simplesmente porque ele não existia. Ele foi formado às pressas, num final de semana, quando algumas reintegrações já estavam marcadas para segunda-feira.
Eu fui um dos conselheiros eleitos e nós nem chegamos a efetivamente tomar posse e debater o que poderia ser feito. Desde a eleição, nossa única atuação tem sido a de um apoio extra-oficial às famílias que estão sendo removidas, muitas delas sem o devido cadastramento do poder público.
Somente com este cadastro elas podem receber a única alternativa oferecida pelo governo: uma bolsa aluguel de 400 reais por mês e que sequer paga um cômodo nas pensões vizinhas.
Algumas famílias foram abrigadas por parentes e amigos. Outras não encontram alternativas e ficaram com as caixas encostadas nas paredes externas daquilo que antes chamavam de casa. Tiveram de fazer a calçada de morada. Uma calçada suja, mais suja do que o comum, porque por ali também acontece o fluxo da famosa e estigmatizada cracolândia. A poucos metros dali, o Governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo, junto à iniciativa privada, erguem torres habitacionais. Nenhuma unidade será destinada às famílias removidas.
Não precisava ser assim. Junto ao Fórum Mundaréu da Luz, um grupo formado por diversas entidades, moradores e comerciantes, desenhamos uma proposta que articula uma política pública diversificada e inclusiva com desenho de projeto cuidadoso e ancorado nas dinâmicas locais. Tudo isso com custos estimados e fontes de recursos mapeados.
A ideia central desta proposta é o conceito chave a chave. Nenhuma família será removida enquanto não houver uma solução definitiva pra ela no mesmo bairro, ou seja, uma outra moradia adequada à capacidade de pagamento e com tamanho e programa compatível às suas necessidades.
Um desejo possível, concretamente possível, mas que beira ao utópico quando confrontada ao aparelhamento do Estado aos interesses antidemocráticos e excludentes que têm recrudescido as ações violentas, sobretudo às famílias mais vulneráveis.
Além de mim, havia o pessoal da Defensoria Pública, do Gaspar Garcia, e outros membros do Mundaréu da Luz tentando dar algum suporte e segurança para aquelas pessoas que, numa questão de minutos, tornaram-se ainda mais fragilizadas.
Para nós que lutamos pelos Direitos Humanos, pelo direito das pessoas existirem com alguma dignidade nesta sociedade, está claro que a tarefa pressupõe a colaboração mútua e contínua dos diversos atores e saberes. Ainda mais agora que estamos vendo ruir o nosso já fragilíssimo Estado Democrático de Direito.
A democracia é uma luta diária da qual nós jamais abriremos mão. Seguimos!”
Texto e fotos: Felipe Moreira, arquiteto e urbanista, integrante da equipe Urbanismo do Instituto Pólis.