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MANIFESTAÇÕES 2013 – Metamorfoses: Passe Livre e Cultura de Paz

18/06/2013

Realizou-se a sexta manifestação do Movimento Passe Livre em São Paulo. Um movimento legítimo que congrega descontentes de todos os matizes. Mais que o passe livre ou o aumento de 0,20 centavos, este movimento é desaguadouro da insatisfação com a desigualdade urbana, com a mobilidade seletiva no território, com a distribuição de bens e serviços de maneira geral, com a corrupção que grassa na sociedade e nos governos, com a impunidade que mostra a cara da justiça apenas para alguns, com o impacto dos megaprojetos,  o desencanto  etc.
Estamos num momento em que se acumularam ranços de uma ordem não mais aceitável pela sociedade e uma democracia ainda restrita que não dá conta das mudanças institucionais necessárias. Por outro lado, as mobilizações em todo o mundo questionam a face cruel das oligarquias, dos fundamentalistas e dos governantes que transferem para a sociedade o ônus da crise, com mais desemprego e deterioração da qualidade de vida.
Nesse sentido, estamos vivendo um momento ímpar, uma autêntica “rebelião do coro”, quando não se aceita mais este modo de viver  que subalterniza os atores sociais e políticos com modelos que se repetem. O próprio governo brasileiro parece abrir mão de um viés histórico que poderia impulsionar um desenvolvimento sustentável – que deveria proteger  florestas e evitar degradações ambientais, defendendo as populações originárias do impacto dos colossais projetos megaeconômicos, como é o caso de Belo Monte.
Escolheu o caminho de um economicismo raso, de mobilidade de classes para segmentos de consumo mais sofisticados (não que isso seja ruim), mas deveria estar num contexto mais amplo de equilíbrio sociedade-natureza. O fato é que o modelo brasileiro não tem foco cultural, no sentido de balizar escolhas que valorizem a cultura e o meio ambiente.
Neste cenário de fortes impactos sobre a vida dos cidadãos, o Movimento Passe Livre desencadeia uma movimentação social não observada há muitos anos. E abre-se um confronto com cores de guerra entre manifestantes e polícia.
Dado o cenário do conflito, a guerra está posta, estimulada por um sentimento de confronto já estabelecido nos planos políticos e da própria subjetividade de parte dos manifestantes, embora a maior parte esteja conectada numa energia pacífica e sem ressentimentos. Enfim, há um estopim a céu aberto.
A polícia revela um despreparo descomunal em tempos de democracia, tem sabores de 1968; parece que nada avançou. Sua truculência demonstra fragilidade dos métodos de enfrentamento da multidão, hoje com técnicas de comunicação não violenta e mediação de conflitos, diálogos, escutas etc. Precisaria formar e informar-se mais das técnicas e métodos para mediar conflitos, já estabelecidos em lugares de grande vulnerabilidade.
A polícia necessita de uma reforma cultural, sem precedentes na história da República. Os manifestantes, a sua menor parte, – é só ver os rostos de muitos jovens carregando faixas ou gritando palavras de ordem – trazem ainda rancor e gritos belicosos. Não se observa nesta uma carga subjetiva forte que estabeleça um sentimento de paz ao sair para a rua. Sem dúvida,  este é um fermento para os tipos de reação após a intervenção da polícia. Alguns argumentam que a polícia começou a violência. É certo: isso não quer dizer que o movimento deve continuar a violência.

Está provado que com o “olho por olho, dente por dente” todos  ficaremos cegos, como afirmava Gandhi. A violência reativa também não se justifica quando desemboca em revide físico ou mesmo em depredação do patrimônio material da cidade. Este patrimônio é de todos, pago com o dinheiro do cidadão e essa conduta prejudica o direito à cidade e também estimula a perda da “razão” pelo movimento. Assim o movimento ganha mais inimigos que amigos.

Sem dúvida,  a manifestação é um direito da cidadania cultural – manifestar suas ideias no espaço público, a criatividade política dos grupos, enfim direito de manifestação e expressão- direito cultural fundamental. No entanto, necessitamos saber o que se deve construir.

Ora, um dos grandes desafios contemporâneos não é apenas construir um mundo melhor, mais equilibrado, redistributivo e democratizar a democracia, acentuando o protagonismo da sociedade. Trata-se de fazer tudo, sim, mas com cultura de paz. Reinventar o sistema político, econômico, o desenvolvimento cultural com paz.  E isso significa REJEITAR A VIOLÊNCIA, conforme o Manifesto 2000 – por uma Cultura de Paz e Não-Violência da UNESCO.
Até agora, com todo o ciclo das revoluções vivemos um processo que nasceu da guilhotina e da boca do fuzil. O novo é justamente fazer as mudanças com cultura de paz, entendida não como apagamento das diferenças e dos conflitos, mas visibilizá-los buscando métodos pacíficos de resolução.
E, para isso, temos tecnologias sociais à disposição. Portanto, não tem sentido criar confrontos ou sentimento de guerra nestes cenários, onde todos deverão perder.

Acredito ainda que os ativistas do Passe Livre poderão ganhar um significado ainda maior ao fazer deste movimento um exemplo de cultura de paz, controlando os belicosos, evitando influências da disputa eleitoral no plano institucional, que verte veneno por todos os lados; também evitando paradigmas de movimentos internacionais. Mas, exercendo a sua própria criatividade e construindo hoje embriões de futuro, que começa pelo transporte, mas poderá revigorar a frágil vida política do país, povoada de pessoas íntegras , mas participantes de governabilidades discutíveis.

Também do ponto de vista da integridade do movimento é necessário observar que a conduta dos seus participantes devem expressar  já a própria mudança que o movimento pretende. Só chegamos a mudanças pacíficas se também exercermos a virtude da paz.
Hoje já existe em todos os continentes um clamor pela vida, postas em movimentos sociais, políticas públicas, criatividades coletivas e individuais, verdadeiras poéticas da existência. Há uma sensação de que a vida que aprendemos na modernidade está em grande parte falida, mas também em reforma e revitalização.
Edgar Morin traz a ideia de metamorfose: “A ideia de metamorfose, mais rica que a ideia de revolução, guarda a radicalidade transformadora, mas liga à conservação (da vida e do patrimônio cultural)… Tudo recomeça por uma inovação, uma nova mensagem.” (in Elogio da Metamorfose).
Quem sabe esta mensagem inicial, renovadora, metamorfoseadora possa começar pela construção de uma cultura de paz que dê outro significado à mudança da vida.

Hamilton Faria é poeta, autor de vários livros, escritor, especialista em políticas de cultura. É  coordenador  de cultura e do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis.