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três perguntas para a coletiva terra preta

18/08/2020

A luta pelo direito à cidade está em constante transformação e disputa. Este mês, vamos conversar com organizações e coletivos que atuam, cada um a sua maneira, por cidades mais justas.

coletiva terra preta

Formada por Emmily Leandro, Gabriela Gaia, Luciana Mayrink, Maria Luiza de Barros e Natalia Alves, a Coletiva Terra Preta nasceu em 2019 como um espaço de “afeto, de trocas, de referências, de segurança e de mudanças”, como explicam as integrantes. Com atuação multiterritorial, a coletiva vem produzindo reflexões sobre arquitetura e urbanismo pelo olhar de mulheres negras, disputando a narrativa, e incluindo os saberes e experiências dessas que foram sistematicamente excluídas da construção das cidades.

Confira nossa conversa:

 Vocês se definem como uma “Coletiva multiterritorial e interseccicional que visa educar, pensar, criar, ampliar as narrativas e práticas para des-embranquecer a cidade”. O que isso significa? Vocês podem contar um pouco de como surgiu e qual a atuação da coletiva?

Nosso encontro se deu para a elaboração da sessão livre “DES-EMBRANQUECENDO A CIDADE: desafios e propostas no campo dos estudos urbanos”, no XVIII ENANPUR Natal (2019). A proposta da sessão livre tomou como referência o processo de constituição das cidades brasileiras, propondo tensionar, a partir de trabalhos de investigações que transitam entre a teoria e prática, algumas das dimensões relacionadas à formalidade hegemônica de produção de/sobre a cidade, ainda pautada em abordagens excludentes e parciais. E por isso, decidimos encarar. A partir daí a Terra Preta se materializou como uma possibilidade de manutenção das conexões que estabelecemos neste primeiro encontro e segue contínua para nós de diversas maneiras. Um ciclo, um espaço de afeto, de trocas, de referências, de segurança e de mudanças.

Aprendemos a respeitar cada uma em suas particularidades, acúmulos de vida, perspectivas e redes. Isso só faz sentido porque acionamos territorialidade distintas e experiências de cidades distintas. Seja do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia ou qualquer outro lugar que já tenha nos atravessado em algo, contribuindo para pensar a cidade. Por isso somos multiterritoriais.

Nossa proposta interseccional é um contraponto aos estudos urbanos que não percebem as estruturas raciais, sexuais e de gênero. Nos importa as experiências racializadas de cidade, seus acúmulos intelectuais, analíticos e subjetivos, para acessar e produzir as reflexões desdobradas em nossas produções. Partindo dessas questões estruturantes da cidade e sociedade brasileira, é sintomática a exclusão das mulheres negras pautando assuntos que tangem o fazer arquitetônico e urbanístico. Ao mesmo tempo, são as mulheres negras, que sempre estiveram, na prática, provendo a existência coletiva. Dessa forma torna-se essencial uma disputa pelas narrativas sobre o urbano, abrindo espaços para que outras surjam e reparando um processo histórico de apagamentos.

Após as reflexões desdobradas na sessão livre “DES-EMBRANQUECENDO A CIDADE: desafios e propostas no campo dos estudos urbanos”, para dar continuidade a essa construção, criamos o canal de podcast Des embranquecendo a cidade. Esse canal de publicação é uma importante ferramenta de consolidação da escrita coletiva, que contempla e une expressões e manifestações presentes na arte, na música e na cultura de forma a proporcionar uma visão ampliada da construção de cidade na Arquitetura e no Urbanismo.

Além do canal de podcast, produzimos textos no portal Medium e ao longo do último ano temos participado de palestras e eventos relacionados aos temas que discutimos.

Seguimos em coletiva, através da reflexão sobre processos, teorias, práticas e movimentos socioespaciais no incurso das urbanidades distintivas das cidades brasileiras. Nossa encruzilhada é como um “tempo/espaço de potência onde os caminhos se atravessam, dialogam, se contaminam, gerando efeitos de encantamento do saber e desestabilização de verdades únicas, buscando abrir e fortalecer novos campos de reflexão e possibilidades sobre o espaço urbano e seus modos processuais de existências.”

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 Qual é a cidade do futuro que vocês sonham para as pessoas pretas?

Uma cidade que acolha possibilidades de existências plurais, na qual vidas possam ser inteiramente vividas, sem que sejam constantemente ameaçadas ou interditadas. A cidade que habitamos hoje elimina a cada 23 minutos um jovem negro, interdita uma vida trans aos 35 anos, agride 1,6 milhão de mulheres por ano. O futuro que sonhamos é aquele que a humanidade das pessoas pretas possa ser garantida. Que uma família possa se tranquilizar sabendo que seu filho chegará em casa sem uma abordagem policial violenta e gratuita, que crianças possam brincar em seus quintais sem serem alvejadas e que haja uma maneira segura de pais e mães trabalharem, sabendo que seu filho será cuidado por pessoas, que não o negligenciem, sendo assegurados seus direitos à educação e à saúde. Que cada cidadão preto possa se deslocar sem ser seguido por desconfiança ou discriminado de espaços privados ou públicos. Uma cidade segura onde a dignidade e a qualidade de vida sejam de fato para todas as pessoas, onde todas as potencialidades das pessoas pretas possam ser exercidas em plenitude e que todos os direitos constitucionais sejam assegurados. Um futuro que garanta que a cidade deixe de ser partida e que o poder público enxergue os territórios negros como centralidades e com um grande potencial para o exercício do bem viver.

Qual livro vocês indicariam para quem se interessa por direito à cidade? Por que?

  1. O livro No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira é escrito por José Carlos Gomes dos Anjos. A obra realiza um inventário de concepções de agentes diretamente envolvidos em uma das inúmeras lutas cotidianas por território que caracterizam as cidades brasileiras. (Indicação por Maria Luiza de Barros)
  2. O livro “Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição”, de Beatriz Nascimento. Uma coletânea de textos e artigos publicados, manuscritos, fragmentos da pesquisa de mestrado, poemas, etc., que mostra o percurso, inquietações e contribuições dessa grande historiadora e intelectual brasileira. (Indicação por Gabriela Gaia)
  3. O livro Corpo/mapa de um país longínquo. In: Eu sou Atlântica, sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Alex Ratz. Sobre a natureza oceânica e infinita presente nos textos de Beatriz Nascimento que carregamos até hoje em mapas longínquos. (Indicação Emmily Leandro)