“Recortes de uma cidade por vir” faz parte de uma série editada pelo Instituto Pólis desde 1991. Essas publicações apresentam reflexões referentes às questões urbanas, buscando debater, propor e avançar na construção coletiva de uma agenda sobre o Direito à Cidade.
Nesta edição, partindo do acúmulo do Pólis nas lutas de temas tradicionalmente associados ao Direito à Cidade, como o acesso a serviços, infraestrutura, moradia, manejamento de resíduos, entre outros, buscamos ampliar discussões sobre as cidades com enfoques atravessados pelas questões de gênero, raça e diversidade sexual. Sabemos o quanto pode ser desafiador pensar interseccionalmente as cidades brasileiras quando elas espelham desigualdades estruturais ainda não superadas, mas consideramos a importância de lançar luz sobre estas questões por acreditar ser fundamental tais discussões no enfrentamento das desigualdades, especialmente no atual momento político que vivemos.
Para esta empreitada, temos procurado nos aproximar de atuações distintas, buscando contribuir e fortalecer as iniciativas que algumas pessoas já desenvolvem para que possamos aprender, compartilhar e construir diálogos, estratégias e ações para disputar, juntes, cidades mais justas. Este Caderno traz, então, provocações e relatos, assim como uma série de experiências territorializadas, recortes de como as questões urbanas se cruzam e se materializam nas cidades. Ao abordarem as vivências da população trans, negra, de mulheres e indígenas, nossas parcerias apontam para possibilidades e sinalizam pistas para saídas futuras, nos contando como estão sendo semeadas agora, com suas fragilidades e potências. A apresentação de cada participante estará junto a seu respectivo texto, e a de cada artista visual estará compilada junto às demais no final do Caderno.
A metodologia escolhida para a construção deste Caderno não é diferente do que temos realizado no âmbito do projeto: Direito à Cidade de Todas as Cores (2019-2020). Temos nos pautado em práticas colaborativas para a elaboração de eventos, materiais gráficos e teóricos, entre outros. Foi assim quando selecionamos algumas pessoas e coletivos com os quais já nos relacionamos ou que tínhamos interesse em estreitar laços devido à reconhecida relevância de sua atuação. Propusemos, então, a escrita de um texto e a produção de imagens com a seguinte questão disparadora:
Como, a partir da perspectiva da sua ação (feminista, antirracista, LGBTQIA+ etc.), podemos criar um projeto coletivo de Cidade acessível, segura e sem nenhum tipo de discriminação?
A integração do material nesta edição passou por quatro momentos:
1. A resposta, num artigo, de cada uma das 15 pessoas/coletivos à questão colocada. Momento em que percebemos que as violências e opressões encontram sistematicamente os mesmos corpos e que os textos traziam propostas, mas também apresentavam denúncias, considerando as identidades, lugares e experiências de suas autoras e seus autores.
2. A troca de textos e comentários entre autores e a equipe Pólis, realizada em atividade de imersão, em outubro de 2019, em São Paulo, onde o compartilhamento buscou o cruzamento entre as diferentes temáticas, fomentando uma complementaridade entre as pautas colocadas e a aproximação das produções às questões urbanas. Desse lugar, surgiram reflexões que indicavam conexões e o aceite à proposta de pensar coletivamente outras cidades possíveis:
“Não somos donos da terra, somos filhos da terra.”
Tama Savaget
“(…) muito do que vivemos na cidade, vivemos para sustentar o lucro e a circulação do capital, não para sustentar a vida.”
Nalu Faria
“(…) nós fundamos a cidade, nós a construímos… E é uma minoria que acha que tem direito sobre nossos corpos”.
Ana Laura Cardoso Oliveira
“Precisamos Resetar a Cidade.”
Symmy Larrat
“(…) e resetar o direito à cidade, sem jogar fora as conquistas e entendendo, também, que essas conquistas são limitadas e não incorporaram as pautas dos próprios filhos dessa terra, acho que este é o grande desafio.” Gabriela Leandro Pereira
“Indigenize-se.”
Urutau
3. A reedição do texto a partir das partilhas realizadas. Neste espaço/tempo de diálogo surgiram trocas e o fortalecimento de redes, assim como o aprofundamento nas temáticas discutidas.
4. Curadoria e convite para cinco artistas de cinco cidades brasileiras que influenciadas pela provocação inicial e pelos textos produzidos, trouxeram também as suas visões de cidades livres de opressão. Escolhemos, junto com Gabriela Leandro Pereira, os trabalhos com colagem, de jovens artistas, com o cuidado de não somente serem as produções do sudeste a representar as discussões sobre as cidades. Essa linguagem nos apareceu como ferramenta mais democrática para criar, costurar e disputar narrativas que ilustrassem as reflexões e re-fundações das cidades descritas.
Aqui, no Pólis, optamos por usar a sigla LGBTQIAP+, e redobrar a atenção ao uso dos pronomes utilizados nos textos de nossa autoria. A escolha é para que reflitamos sobre o que informa a língua, dado que a escrita tem também uma dimensão política na validação do que é ou não considerado normal. As discussões realizadas entre as pessoas convidadas, embora tivessem o intuito de aproximar as agendas aprofundando as reflexões sobre as cidades, atravessaram em medidas distintas cada texto. E mesmo se apresentando como colagens, os textos são recortes sob a responsabilidade de quem os escreveu.
Este material foi pensado, elaborado e realizado antes do decreto de distanciamento social, medida cautelar para a contenção da pandemia causada pela COVID-19, em 2020. Neste momento, em que ficam mais nítidas as desigualdades históricas e que tendem a se intensificar, é ainda mais urgente obter materiais e estar perto de pessoas que auxiliem em reflexões para a construção de futuros vislumbrando a criação de cidades utópicas, único cenário possível para a existência de todos os corpos, sem discriminação, com liberdade. E que esse ideário possa, inclusive, passar pela institucionalização de algumas das medidas, através de políticas públicas transversais orientadas para a transformação do sonho em realidade.
Tendo apresentado nosso processo, resta-nos agradecer profundamente toda a disponibilidade, dedicação e interesse das pessoas envolvidas neste Caderno. A quem escreveu, a quem produziu imagens, agradecemos o aceite, o compromisso, a fala, a escuta, a criação e a elaboração a partir do desafio colocado de pensar outras cidades, que acolham, reconheçam e representem a diversidade que nos caracteriza.
Queremos agradecer também a equipe do projeto Direito à Cidade de Todas as Cores que compartilharam e complementaram as discussões. Esta produção é resultado do nosso acúmulo diário. O agradecimento se estende às demais equipes do Pólis que possibilitam o dia a dia desta instituição e de todas as produções que dela resultam. À Gaia (Gabriela Leandro Pereira), por suas indicações e auxílio em pensar o imaginário das cidades para além das referências comuns. À revisora, Sheila Dystyler Ladeira, pela paciência, cuidado e rigor.
Por fim, e, em especial, à Marina e Caíque, pelo resultado gráfico deste produto. Esta edição foi pensada para que se revelasse mais do que um Caderno: um processo construído a muitas mãos, um processo que não queremos que se esgote nestas páginas, mas que se prolongue para repensarmos, refundarmos e resetarmos cidades. Que se potencialize para a reflexão, mas também, e acima de tudo, para a ação.
Apresentamos agora os textos e ilustrações. A sequência de ‘recortes’ foi organizada para possibilitar a reflexão a partir das múltiplas visões, existências e lutas, cruzadas e relacionadas. Não pretendemos a complementaridade nem a unificação das pautas, pretendemos apenas apresentar possibilidades, a partir da diversidade, do que sabemos ainda ser parcial sobre o Direito à Cidade de Todas as Cores.
Esperamos que, a partir destas e de outras perspectivas, possamos construir lugares e cidades mais plurais, acolhedoras, justas e democráticas. Que estas reflexões possibilitem também, para você que nos lê, a resposta para a pergunta:
A partir da perspectiva da sua existência, como criar um projeto coletivo de Cidade acessível, segura, e sem nenhum tipo de discriminação?
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