dois anos de pandemia no msp [ignorar]

dois anos de pandemia no município de são paulo fevereiro 2022

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Balanço dos impactos da Covid-19 entre 2020 e 2021

Ao longo de 2020 e 2021, dados sobre hospitalizações, óbitos e vacinação foram reunidos em análises que propuseram fazer leituras urbanas sobre a pandemia na cidade. Além de mapear seus impactos, notadamente desiguais no território e nos diferentes grupos populacionais, esses estudos também buscaram demonstrar a importância de certas estratégias para o adequado monitoramento epidemiológico, controle do contágio e preservação da vida, primando pela redução das iniquidades sociais e pela afirmação de direitos. Este estudo faz um balanço sobre os dados da mortalidade por Covid-19 no Município de São Paulo (MSP) entre 2020 e 2021 e tem como objetivo sintetizar leituras acerca da pandemia na capital paulista, como forma de reforçar algumas recomendações que são centrais para o enfrentamento da emergência sanitária que, importante salientar, ainda não terminou. 

Para demonstrar e entender os efeitos desiguais da pandemia, utilizamos alguns recursos de análise baseados em dados públicos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS). As informações gerais sobre mortalidade por Covid-19 foram obtidas na plataforma DataSUS/Tabnet no dia 31 de janeiro de 2022 e, portanto, já contemplam o primeiro mês do ano. [1] As informações mais detalhadas, contendo local de residência, estabelecimento de saúde e ocupação da vítima foram obtidas via Lei de Acesso à Informação em 3 de dezembro de 2021, incluindo dados até o mês de novembro do mesmo ano. Os dados sobre vacinação foram obtidos na plataforma de dados abertos Open Datasus, do Ministério da Saúde, e dizem respeito a todas as doses administradas até setembro de 2021.

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A concentração espacial de óbitos por Covid-19 considera o local de residência da vítima e demonstra que as mortes não se distribuem de maneira homogênea no território da cidade. O mapa de calor [2] revela os focos de mortes pela pandemia. As concentrações são definidas pela combinação de quantidade (volume elevado) e proximidade (distância física) entre elas.

[1] Esta base mais detalhada contabiliza dados somente até novembro de 2021. No entanto, tanto novembro quanto dezembro daquele ano somaram um volume de óbitos relativamente menor. Assim, a base adquirida corresponde a 95,5% do total de óbitos anotados ao longo dos anos de 2020, 2021 e o primeiro mês de 2022  – informação divulgada pela plataforma DataSUS/Tabnet, que realiza atualizações semanais. Ainda que, na prática, este banco de dados não contemple o ano de 2021 por inteiro, as análises realizadas são numericamente representativas da pandemia como um todo, uma vez que o número de óbitos ocorridos nos últimos dois meses de 2021 não alteram significativamente o cenário da Covid-19 no Município de São Paulo.
[2] Mapa produzido pela estimativa de densidade Kernel com raio de 1,5km.

A heterogeneidade espacial, caracterizada pela concentração e dispersão dos óbitos, expressa condições desiguais de proteção e resposta à pandemia, sugerindo que alguns grupos populacionais estão mais expostos à infecção e/ou mais suscetíveis a quadros sintomáticos graves que levam ao óbito. Neste sentido, a identificação de áreas mais afetadas deveria orientar o controle epidemiológico na cidade. É fundamental, portanto, que o enfrentamento à pandemia (e também outras emergências sanitárias) considere a dimensão espacial da Covid-19 promovendo, em territórios mais impactados, ações estratégicas como testagem em massa, rastreamento de contatos, mobilização de agentes comunitários de saúde, além dos ajustes necessários para adequar a capacidade de unidades básicas e hospitais.

O cálculo das taxas de mortalidade [3] ao longo dos meses indica um impacto desigual sobre os grupos populacionais definidos por raça/cor da pele e sexo. [4] A mortalidade entre pessoas negras (pretas e pardas) tem sido significativamente maior do que em pessoas brancas. Nos momentos em que a pandemia se agravou, acelerando os óbitos, o impacto da mortalidade foi proporcionalmente maior entre mulheres negras e, principalmente, entre homens negros. Sempre que há um aumento expressivo no número de mortes, a curva de homens negros tende a se distanciar das demais, apresentando taxas muito maiores. Na primeira onda (entre maio e junho de 2020), a taxa de mortalidade de homens negros foi de 62,7 mortes acada 100 mil habitantes, duas vezes maior que a taxa de mortalidade geral do MSP, de 30,9 mortes/100 mil habitantes. Durante a segunda onda (março e abril de 2021), o aumento mais expressivo é novamente observado na taxa de mortalidade de homens negros, confirmando um padrão racial: quando a pandemia piora (com aumento de mortes), o impacto é maior entre pretos e pardos.

[3] As taxas de mortalidade analisadas passaram pelo processo de padronização: um tratamento estatístico utilizado na epidemiologia, que permite a comparação da mortalidade entre grupos populacionais de composições etárias distintas.
[4] “Raça/cor da pele” e “sexo” são as denominações usadas para identificar as variáveis disponíveis pelo banco de dados analisado. Os nomes dos campos são adotados em diversas bases de dados públicas e seguem o padrão do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O primeiro campo diferencia pessoas “brancas”, “pretas”, “amarelas”, “pardas” e “indígenas” enquanto o segundo identifica os sexos biológicos “feminino” e “masculino”.

A taxa das mulheres negras é sempre inferior a de homens (negros e brancos) e costuma coincidir com as taxas gerais da cidade, que, por sua vez, são sempre superiores e de mulheres brancas. Quanto a essas diferenças, algumas observações são necessárias. Alguns estudos apontam uma combinação de fatores que poderiam explicar a mortalidade maior entre homens. [5] Maior incidência de comorbidades, maior exposição à infecção (dependendo do contexto social), comportamentos de risco e respostas imunológicas diferenciadas ajudariam a entender a diferença entre os sexos. Até mesmo a disposição ou hábito de recorrer a cuidados de saúde – de forma preventiva ou não – pode complementar essas análises. Assim, seria esperado que as taxas de mulheres fossem menores que a de homens. A diferença de mortalidade entre pessoas negras e pessoas brancas, por outro lado, acende um alerta sobre Determinantes Sociais em Saúde,[6] as quais definem níveis maiores ou menores de exposição a doenças, assim como também ditam as chances maiores ou menores de sobrevivência.

[5] BERMUDI, 2020.
[6] A concepção sobre os Determinantes Sociais em Saúde propõe uma visão ampliada do processo saúde-doença, conectando os múltiplos fatores que influenciam no adoecimento, a fim de evitar uma abordagem fragmentada dos problemas de saúde. Condições de vida, bem-estar social, distribuição de renda, condições de trabalho, acesso à redes de suporte social e ao sistema de saúde são alguns dos elementos a serem considerados. Essa concepção é importante para entender como a saúde é um processo integrado e atua como um parâmetro para a busca de justiça social, tendo em vista as condições desiguais nas quais determinados grupos nascem, vivem, adoecem e morrem. (GALVÃO, et al., 2021.)

As curvas das taxas de acumuladas reafirmam uma clara diferença entre a mortalidade de negros e negras, brancos e brancas, demonstrando a iniquidade racial diante dos impactos da Covid-19.  Vale reforçar que estamos falando dos “efeitos da pandemia”, os quais não dizem respeito à infecção em si ou ao comportamento do vírus em diferentes indivíduos. O SARS-CoV-2 não faz distinção biológica dos organismos que infecta, quanto à raça ou cor da pele. Os indicadores apontam desigualdades sociais sobre como cada grupo analisado (brancos e negros) consegue responder à epidemia, o que, envolve outros fatores como acesso à saúde, possibilidade de isolamento e outras variáveis que indicam maior ou menor vulnerabilidade socioeconômica. 

A iniquidades raciais observadas desde o início da pandemia se mantiveram ao longo de todo o período analisado. Se as taxas de mortalidade mostram que, comparativamente, morrem mais negros do que brancos, é fundamental entender como as condições gerais de vida (renda, trabalho, moradia, mobilidade) e de acesso à saúde interferem nos riscos de infecção e no desenvolvimento da doença com maior gravidade – incluindo casos que terminam em óbito. Idealmente, as ações de combate a pandemia deveriam se propor encarar as desigualdades e o racismo estrutural buscando a redução das mortes até que não houvesse diferenças tão significativas entre aquelas observadas nas taxas de mortalidade. O mapeamento deste indicador ajuda a entender onde vivem as populações mais impactadas pelas mortes da pandemia.

Quando espacializadas por área de ponderação, [7] as taxas de mortalidade também expressam os efeitos desiguais da pandemia, demonstrando a proporção de vítimas de Covid-19 em relação a sua população residente (mortes a cada cem mil habitantes).

[7] As áreas de ponderação são junções de setores censitários do IBGE. Elas podem coincidir com o perímetro de um ou mais bairros, mas também podem ter o tamanho de um distrito administrativo. Apesar da variação em relação a sua dimensão territorial, as áreas de ponderação permitem um nível de agregação de dados que é interessante para o cálculo de determinados indicadores.

As áreas com menores taxas de mortalidade (portanto menos afetadas) se concentram nas regiões com maior padrão de renda. Maiores rendimentos estão associados à maior acesso a serviços de saúde, o que pode ser determinante às chances de cura ou morte em uma eventual infecção de Covid-19. Neste caso, existe uma forte correlação inversa entre a variável renda e mortes: quanto maior o poder aquisitivo, menores as taxas de mortalidade pela pandemia. [8] A concentração da população negra em áreas de menores rendimentos médios corrobora a leitura de que este grupo está mais suscetível aos efeitos da pandemia, como demonstram as taxas de mortalidade apresentadas anteriormente. 

O menor padrão de renda pode também expressar a colocação no mercado de trabalho de determinadas populações. As possibilidades de isolamento/distanciamento social, assim como a adoção de outras medidas não farmacológicas de proteção, são desiguais entre diferentes grupos sociais, na medida em que muitas famílias não podem deixar de trabalhar presencialmente durante a pandemia, implicando uma maior exposição à infecção ao circular pela cidade. Os deslocamentos em função do trabalho são um fator preponderante ao grau de disseminação do vírus conforme estudos anteriores demonstraram. Neste sentido, é fundamental avaliar a ocupação das vítimas de Covid-19 para inferir a relação da retomada de determinadas atividades econômicas – em seu exercício presencial – com a disseminação do vírus e a mortalidade da pandemia.

[8] A correlação a que o texto se refere foi testada segundo o método de Pearson (correlação linear) a partir de variáveis agregadas por áreas de ponderação. Os indicadores sobre padrão de renda apresentaram um índice de correlação considerado forte quando comparados com as taxas de mortalidade por Covid-19. Outras correlações foram testadas e, ao contrário do que o senso comum veicula, não há relação significativa entre a presença de aglomerados subnormais (favelas) e as altas taxas de mortalidade observadas.

covid-19 e trabalho

Para compreender o peso de setores e categorias de atividade na mortalidade por Covid-19, foram identificadas 977 ocupações e, posteriormente, agrupadas por setores econômicos e categorias, que consideraram: tipo de atuação, nível de exposição do trabalhador/a e possibilidade de trabalho remoto. Ao todo foram registrados 42.575 óbitos, entre março de 2020 a novembro de 2021, porém 13,3% não tiveram o campo ‘ocupação’ preenchido adequadamente, impossibilitando sua identificação. Analisando o universo conhecido (36.907), óbitos de categorias de trabalhos remunerados contabilizam 47,4%, seguidos por aposentados (34,1%), donas de casa (17,0%), desempregados (1,3%) e estudantes (0,2%).

As atividades remuneradas foram divididas em setores e categorias. O destaque é do serviços, composto por 15 categorias, com 31,8% das mortes, indústria (9,0%), comércio (6,2%) e o setor agrícola (0,4%) compõem os outros os setores de atividade. Para avaliar o impacto de cada categoria, de fato, é necessário construir um indicador que compare o percentual de mortes no total observado no MSP e a participação desse mesmo contingente de trabalhadores no total da população municipal. Quando o indicador for superior a 1, existe uma desproporcionalidade, ou seja, a participação dos óbitos é superior à fração de pessoas que desempenham essa função. Assim, é possível identificar quais atividades levaram a uma superexposição de seus trabalhadores e trabalhadoras à infecção.

Analisando o ranking das ocupações mais afetadas, em primeiro e segundo lugar estão aposentados/pensionistas e donas de casa. Dois grupos com composições diferentes entre si e hipóteses distintas acerca dos fatores que mais contribuem para o alto número de infecções e óbitos, porém com uma coisa em comum: 90% das vítimas eram pessoas idosas, conhecidamente um grupo de risco, com suscetibilidade a manifestações graves da doença.

Trabalhadores do transporte e tráfego, que reúne ocupações tanto do transporte público coletivo, quanto do transporte privado individual, também apresentam um alto impacto na mortalidade. Com 4,2% das mortes e um indicador de 2,23, é uma categoria que observou uma desproporção muito elevada entre os óbitos e a quantidade de pessoas que desempenham a atividade. Neste grupo há predominâcia do sexo masculino (94%), pessoas que não concluíram a educação básica (88%), maior proporção de pessoas jovens e adultas (38%) e uma participação maior de pessoas negras (37%). “Motorista de táxi/aplicativo” é a ocupação mais atingida.

Os serviços administrativos e informacionais, em conjunto dos profissionais liberais, também apresentam um indicador alto (1,83) [9] e representam, juntos, 8,8% dos óbitos. No entanto, os trabalhadores dos serviços administrativos e informacionais são responsáveis pela maior quantidade de mortes (6,0% do total). É um grupo composto por vários tipos de atividades administrativas, que incluem administradores de empresas, auxiliares administrativos, operadores de telemarketing, etc. São vítimas majoritariamente brancas (75%), do sexo masculino (94%) e com alta participação de jovens e adultos (48%). “Diretor geral de empresas e organizações” é a atividade mais afetada.

A indústria da construção civil também surge como destaque negativo e um alto indicador (1,71). Considerada atividade essencial desde o início da pandemia, contabilizou 4,6% dos óbitos, por expor diariamente diversos trabalhadores, especialmente aqueles que desempenham atividades no canteiro de obras. É um grupo composto pelo sexo masculino (99%), pessoas negras (45%), maioria de idosos (71%) e de menor escolaridade. A ocupação “pedreiro” é a que teve mais mortes observadas.

Outra categoria, também muito atingida e classificada como atividade essencial, foi a de trabalhadoras domésticas. São óbitos, em sua grande maioria, de mulheres (92%), pessoas negras (54%), de menor escolaridade (90%) e uma proporção maior de pessoas jovens e adultas (42%). Representam 2,7% das mortes e possuem um alto indicador (1,18).

A caracterização do perfil das mortes das categorias mais atingidas é importante para compreender: o grau de exposição das mais diversas atividades, o que pode contribuir para um maior risco de exposição; além de qualificar quais, de fato, são as populações mais atingidas da cidade. Como leitura geral, verificamos que a mortalidade está concentrada em categorias que predominam grupos de risco, como o caso de aposentados e donas de casa, que concentram pessoas idosas; e em atividades remuneradas – em sua maioria – de menor rendimento, em que os trabalhadores e trabalhadoras, pela falta de seguridade social e políticas adequadas, foram continuamente obrigados a sair para trabalhar, do contrário teria suas rendas familiares comprometidas.

Esse panorama apresentado, a partir da análise da pandemia como um todo, indica os padrões gerais da mortalidade e as correlações com o trabalho, porém oculta importantes diferenças observadas ao comparar os ciclos de contágio contidos nesses dois anos. É importante considerar nas análises os recortes temporais para identificar mudanças nos perfis dos óbitos, principalmente considerando o avanço da vacinação e a retomada de várias atividades presenciais, que ficaram suspensas por boa parte de 2020.

[9] Apesar de serem grupos com atividades diversas, pela metodologia utilizada na construção do indicador, são avaliados em conjunto. A quantidade de pessoas no município de São Paulo e o indicador foram calculados a partir da variável ‘Setor de Atividade’, disponível na Pesquisa Origem e Destino 2017. A definição do Setor de Atividade, no entanto, é mais abrangente do que a classificação das ocupações realizada por este estudo. A escolha metodológica de segmentar alguns setores foi feita para analisar o impacto dos óbitos de alguns grupos, que compõem o mesmo setor, porém possuem características bastante diferentes, tais como: tipo de atuação, nível de exposição, distribuição etária, racial, escolaridade, padrões territoriais, etc. Portanto, o indicador pode abranger mais de um grupo analisado pela pesquisa.

uma pandemia em dois anos

Os momentos mais graves da pandemia de Covid-19, definidos pelo aumento vertiginoso dos números de infecção e de mortes, são marcados por dois períodos: entre abril e maio de 2020 e entre março e abril de 2021. Os termos “primeira onda” e “segunda onda” fazem alusão direta à  imagem gráfica gerada pelos casos e mortes por infecção do SARS-CoV-2: os aumentos expressivos, sucedidos pela queda dos números, sugerem movimentos recorrentes de agravamento e arrefecimento da crise sanitária (em termos epidemiológicos de contágio e mortalidade). Embora sejam ciclos de uma mesma pandemia e – um decorrente do outro – é possível fazer a leitura da Covid-19 no MSP por dois recortes temporais: o ano de 2020, marcado pelas medidas mais restritivas, pelo medo e desconhecimento acerca da doença; e o ano de 2021, definido pelas reaberturas, retomadas de atividades presenciais e avanço gradual da vacinação.

O gráfico do volume de óbitos segmentados por grupos etários mês a mês ajuda a caracterizar e entender os dois principais períodos da pandemia desde seu início.

A contribuição das mortes de pessoas com 60 anos ou mais (faixas etárias idosas) é, por padrão, majoritária. Este é um efeito conhecido da Covid-19, já que a infecção acomete mais pessoas de mais idade. No entanto, a parcela minoritária de vítimas com menos de 60 anos variou ao longo do tempo. As duas grandes ondas são particularmente caracterizadas pelo aumento da participação deste grupo etário, não-idoso, no total de mortes. Em maio de 2020, mês com maior número de mortes daquele ano, os óbitos de pessoas com até 59 anos representaram 25% do total. Entre março e abril de 2021, este mesmo grupo anotou de 30% a 51% das mortes por Covid-19. Considerando a pandemia como um todo, as mortes de 0 a 59 anos representam 28% do total.

A primeira onda se formou a partir da disseminação do vírus em meio a um certo desconhecimento sobre a doença e suas formas de propagação, o que se agravou com a desinformação e o negacionismo genocida promovido por autoridades. A suspensão temporária de algumas atividades – aquelas consideradas não essenciais quanto ao exercício presencial – teve sua importância na contenção da mortalidade, ainda que não tenha tido o alcance desejado para frear significativamente as infecções. [10] Especula-se que a saturação das cadeias de contágio e a criação de bolhas imunológicas em áreas mais impactadas pela Covid-19 tenham contribuído para a queda dos números no segundo semestre de 2020. [11]

No entanto, a reabertura gradual de algumas atividades do comércio e do setor de serviços, a adoção menos restritiva de protocolos de lotação em determinados estabelecimentos, assim como o desgaste das medidas de distanciamento social entre a população, alimentaram um novo ciclo de infecções no fim de 2020. As férias, viagens, aglomerações e reuniões de família teriam contribuído para esse aumento na passagem de ano, produzindo os números expressivos de óbitos em março e abril de 2021.

O aumento significativo das mortes na segunda onda pode ser entendido como resultado de políticas públicas falhas, que não priorizaram a contenção do contágio da Covid-19 e a proteção dos grupos sociais mais vulnerabilizados. Pelo contrário, os modelos de reabertura econômica gradual contribuíram para a explosão dos números a despeito de todos os dados e alertas. O crescimento relativo dos óbitos de pessoas não idosas (de 0 a 59 anos) pode ser entendido parcialmente como resultado desse processo de retomada das atividades presenciais. Por um lado, essa reabertura aumentou a exposição de um grupo populacional economicamente ativo que, antes em 2020, esteve relativamente mais protegido com as restrições do isolamento social (ainda que limitadas) e com a adoção do teletrabalho em algumas atividades. Por outro lado, este mesmo grupo populacional teve que aguardar mais tempo para começar a ser vacinado, uma vez que a campanha de imunização priorizou pessoas mais idosas. 

Como a completude do ciclo vacinal da população de 0 a 59 anos foi evoluindo de forma lenta e gradual ao longo de 2021, grande parte da população que retornou às atividades presenciais – e, portanto, a níveis de exposição ao vírus mais elevados – ainda não estava completamente protegida. O resultado é o aumento da participação de pessoas não idosas no volume de óbitos, a ponto de, no mês de junho de 2021, terem somado 51% (mais da metade) do total de mortes.

[11] AÇÃO COVID-19, 2020.
[10] Muitas matérias de imprensa registraram as taxas de isolamento e sua oscilação decrescente ao longo do tempo. O indicador é calculado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) do Estado de SP e pode ser acompanhado na plataforma de monitoramento Adesão ao Isolamento Social em SP.

rejuvenecimento na segunda onda

Os quatro piores meses da segunda onda de Covid-19 (de março a junho de 2021) somam 6.440 mortes de pessoas de até 59 anos; cerca de 54% do total de óbitos registrados para este grupo etário no Município de S. Paulo. O número indica a importância deste período específico para a mortalidade de pessoas não idosas ao longo de toda a pandemia. A reabertura econômica e a vacinação prioritária para idosos são fatores que, conforme comentado anteriormente, ajudam a entender o fenômeno.

A análise sobre as ocupações daquelas 6.440 mortes mostra que eram pessoas empregadas no setor de serviços administrativos (gerenciais, informacionais ou telemarketing), serviços de transporte e tráfego, serviços com atendimento ao público e no setor do comércio. A participação dessas categorias nos óbitos deste grupo específico é maior que os percentuais registrados, para as mesmas categorias, dentre os óbitos totais no MSP. Durante os quatro piores meses da segunda onda, os óbitos de pessoas empregadas em serviços administrativos corresponderam a 11,9% do total de mortes com até 59 anos no período. Esta porcentagem na população total do MSP durante todos os meses da pandemia é de 6,0%. Outro exemplo: 7,9% das mortes de até 59 anos, naqueles quatro meses, corresponderam ao setor de transporte e tráfego, enquanto o mesmo setor representou 4,2% dos óbitos totais por Covid-19 da cidade de São Paulo. O comércio também apresenta diferenças: 9,4% no grupo mais jovem e 6,2% no total geral do MSP. Essas diferenças observadas corroboram a leitura de que a retomada de alguns desses setores econômicos pode ter tido forte influência no incremento de óbitos entre março e junho de 2021 – pior momento da segunda onda na capital paulista.

A análise da cobertura vacinal também ajuda a compreender o grande volume de mortes de pessoas com até 59 anos.

Até junho de 2021, cerca de 54,6% da população idosa (de 60 anos ou mais) já havia sido imunizada com segunda dose ou dose única, enquanto apenas 4,5% da população de até 59 anos estava com o esquema vacinal completo.

Tal discrepância é, de certa forma, esperada, porque as taxas de vacinação observadas até aquele momento – durante a segunda onda – refletem os critérios de priorização da campanha de imunização contra a Covid-19. Esses números, no entanto, servem para reafirmar que o grupo etário de 0 a 59 anos estava, comparativamente, mais desprotegido (em termos imunológicos) durante a reabertura econômica que acompanhava, contraditoriamente, o aumento vertiginoso de infecções na cidade (e no país).

Esta análise temporal da mortalidade de diferentes grupos etários ajuda (a) a compreender a importância – do esquema completo – da vacinação para a construção de uma imunidade coletiva, que seja suficiente à retenção do contágio de Covid-19, e (b) entender as consequências do processo de reabertura econômica quando não planejado, ou quando não adequado aos parâmetros de segurança epidemiológica necessários para frear as infecções e mortes.

O fim do ano de 2021 apresentou uma queda significativa de mortes por Covid-19, o que indica o efeito virtuoso da ampliação da cobertura vacinal às demais faixas etárias da população. Contudo, os dados de janeiro de 2022 [12] confirmam o aumento preocupante dos números de óbitos, que podem escalar ainda mais devido à disseminação da variante Ômicron, mais infecciosa e com potencial de sobrecarregar o sistema de saúde, elevando o número de casos graves. Neste sentido, ganha ainda mais importância a ampliação da cobertura vacinal completa e o entendimento (por parte da população e  das autoridades) que a retomada de atividades presenciais, especialmente aquelas não essenciais e que geram aglomerações, deve ser revista e adequada a protocolos de segurança sanitária mais compatíveis com o grau de risco apresentado pela nova cepa do coronavírus.

recomendações

Há indícios de que caminhamos para um cenário em que a Covid-19 seja uma doença endêmica, mais permanente, por vezes previsível, com padrão de infecções estável ao longo do tempo; assim como outros vírus respiratórios com circulação sazonal. Assim, o monitoramento e a vigilância epidemiológica adequados deverão ser incorporados às rotinas governamentais de planejamento e execução de políticas em saúde e assistência para que as consequências epidemiológicas não sejam tão graves, como as que temos observado, nem aprofundem as desigualdades já existentes.

A identificação das áreas mais afetadas pela pandemia e das regiões com menor cobertura vacinal é uma forma de incorporar a dimensão territorial da Covid-19 às ações de vigilância epidemiológica, sejam medidas preventivas ou de combate direto. Ainda, o desenho e implementação das estratégias de combate à pandemia devem considerar as características locais de cada território, de modo a garantir maior efetividade das ações, como:

  • Testagem em massa com genotipagem do vírus, disponível em locais de fácil acesso à população, para mapear em tempo real as cadeias de contágio;
  • Rastreamento de contato, para monitorar a disseminação do vírus e conter o seu avanço;
  • Mobilização dos agentes comunitários de saúde que, além do acompanhamento da saúde geral da população, auxiliam no acesso à informação adequada e na ampliação do alcance da vacinação;
  • Busca ativa de pessoas que não estão com o esquema vacinal completo (segunda dose ou dose única) ou que já estejam aptas à dose de reforço. O mapeamento contínuo da cobertura vacinal deve ser feito para indicar os territórios a serem priorizados pela campanha de vacinação;
  • Adequação da capacidade de atendimento das Unidades Básicas de Saúde e hospitais para atender satisfatoriamente o incremento do número de casos, nos momentos de maior circulação do vírus.

A análise dos ciclos de contágio e morte durante os dois anos de pandemia evidenciou a importância de:

  • Adoção contínua de medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, higienização constante das mãos, esterilização de ambientes e superfícies compartilhadas;
  • Incentivos ao isolamento social – se necessário, com suporte financeiro – como método de proteção dos grupos mais vulneráveis;
  • Adoção de protocolos mais rígidos acerca de aglomerações em espaços (públicos e privados), diante do crescimento dos níveis de contágio. Este tipo de medida deve orientar as regras em datas comemorativas e em grandes eventos, que têm potencial de aumentar. Os cuidados redobrados durante o período do carnaval são fundamentais, por exemplo, para não multiplicar as cadeias de contágio (veja nota pública do Instituto Pólis sobre o cancelamento do carnaval de rua de 2022).

A comparação do indicador que avalia o impacto da mortalidade nas categorias de trabalho, entre 2020 e 2021, revela um incremento significativo da mortalidade por Covid-19 em algumas atividades, o que pode ser lido como resultado direto da suspensão de medidas restritivas à circulação e às atividades presenciais, sem que houvesse uma avaliação adequada dos dados da pandemia.

Dentre os grupos que apresentaram crescimento relativo da mortalidade no ano de 2021 – ano marcado pela retomada de diversas atividades que estavam remotas ou com restrições –  destacam-se: serviços administrativos e informacionais (com crescimento de 44%), educação (44%), serviço de alimentação (24%) e serviços da administração pública (20%). O aumento anotado é, provavelmente, reflexo da reabertura econômica e retorno gradativo às atividades presenciais que resultaram em maior exposição à infecção. A título de exemplo, as atividades relacionadas à educação mantiveram-se remotas durante todo o ano de 2020. Com a retomada das atividades, profissionais dessa área também passaram a circular mais pela cidade e a estabelecer contato direto com mais pessoas no caminho ou no local do trabalho, aumentando as possibilidades de contágio. Neste sentido é fundamental o:

  • Estabelecimento de parâmetros mais rigorosos que orientem a suspensão e a retomada de determinadas atividades econômicas, primando pela contenção dos níveis de contágio e preservação da vida. As prioridades da reabertura não podem desconsiderar a situação epidemiológica existente. A retomada de atividades presenciais precisa ser definida a partir de protocolos de segurança sanitária compatíveis com grau de risco avaliado, sempre partindo da análise cuidadosa dos indicadores e dados atualizados;
  • Aprimoramento do serviço nos transportes públicos, de modo a garantir níveis de segurança sanitária aos passageiros e passageiros, bem como aos profissionais dos sistemas de mobilidade urbana. O aumento da circulação de ônibus, trens e metrôs, por exemplo, é uma forma de reduzir as aglomerações

Este balanço sobre os dados da pandemia no Município de S. Paulo busca apresentar análises e embasar recomendações que podem tornar o enfrentamento à Covid-19 mais eficaz, combatendo as desigualdades na chave da promoção de direitos. Nossa intenção não é apresentar um documento alarmista, que defende medidas radicais e que não entende as dificuldades inerentes à implementação das medidas que sugere. Todo mundo precisou abrir mão de aspectos da vida para atender contingências da pandemia nesses últimos tempos. Cientes dos desgastes e dos custos que dois anos de pandemia nos impuseram, as recomendações e os conteúdos aqui apresentados visam, justamente, contribuir com o enfrentamento à Covid-19, de modo a torná-lo um processo menos oneroso e menos duro. É verdade que, por um lado, combater os impactos da pandemia não pode ser um motivo para a suspensão permanente da vida cotidiana e do convívio social, mas o risco constante à vida não pode ser minimizado ou normalizado, sobretudo, se existem medidas eficientes que, reconhecidamente, podem combater a disseminação do vírus.

[12] Os dados de janeiro de 2022 foram obtidos por consulta feita no dia 31, o último dia do mês, mas estão sujeitos a atualizações retroativas que, provavelmente, irão consolidar números maiores do que aqueles até aqui registrados.

equipe

Este estudo é uma colaboração entre:

  • Danielle Klintowitz, arquiteta urbanista e coordenadora gera do Instituto Pólis;
  • Vitor Nisida, arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis;
  • Lara Cavalcante, arquiteta urbanista e pesquisadora do Instituto Pólis;
  • Deivison Faustino,  professor do PPGSSPS da UNIFESP e pesquisador do Instituto Amma Psique e Negritude;
  • Olinda Luiz, pesquisadora do HCSP e professora colaboradora da FMUSP;
  • Jorge Kayano, médico sanitarista e pesquisador do Instituto Pólis. Participa do Coletivo Intersetorial pela Vida em São Paulo.

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