racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades

racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades julho 2022

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Diante da emergência climática de escala global, é mais do que urgente discutir e demonstrar seus impactos socioambientais. Nas cidades, os efeitos da crise ambiental se manifestam de forma territorialmente desigual, impactando desproporcionalmente as populações urbanas a depender do seu grau de vulnerabilidade e, consequentemente, da sua capacidade de resiliência. Por isso, é preciso direcionar as atenções e as ações para esses grupos, que são os mais afetados pelos desastres ambientais, agravados pelas mudanças climáticas, e que vivem cotidianamente com a falta de serviços básicos, em situações de risco, vulneráveis à processos de escassez hídrica, enchentes, inundações, deslizamentos, falta de energia, insegurança alimentar, entre outros. A distribuição desigual desses riscos segue o modelo da própria urbanização, que historicamente tem se estruturado enquanto espaço excludente e racialmente definido. Padrões de renda, nível de escolaridade, raça/cor da pele, gênero e local em que se vive definem quem são as populações mais vulnerabilizadas e mais impactadas. São problemas estruturantes que exigem transformações radicais, muitas das quais passam também por alterações nos espaços de representação política. Eleger mulheres negras, indígenas e pessoas LGBTQIA+ comprometidas com as agendas do direito à cidade e da justiça socioambiental ambiental é um determinante para a construção de cidades justas, saudáveis e democráticas.

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Meio ambiente e meio urbano não devem ser entendidos como dimensões separadas ou antagônicas. Pelo contrário, as cidades também fazem parte dos ecossistemas globais. Os modos como planejamos e produzimos o território, como nos apropriamos dos espaços e como circulamos pelas cidades podem ser mais ou menos impactantes ao meio ambiente. Da mesma forma, os efeitos da degradação ambiental também afetam a vida nas cidades, atingindo, contudo, as populações urbanas de  forma desproporcional. Por isso, ao olhar para as vulnerabilidades ambientais nas cidades brasileiras, precisamos também considerar outros marcadores sociais da desigualdade, como raça, gênero, classe, etc.

Em outras palavras, os impactos ambientais nas cidades são socialmente produzidos: não são apenas fruto de eventualidades climáticas. No entanto, a distribuição de suas consequências se dá de forma desigual no território urbano. Esse desequilíbrio é, em parte, a expressão da injustiça socioambiental e do racismo ambiental nas cidades.

A injustiça socioambiental, de acordo com Robert Bullard (2004) e a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (2001) fica caracterizada quando os danos ao meio ambiente produzem impactos desiguais que sobrecarregam desproporcionalmente pessoas de baixa renda, populações marginalizadas, grupos minoritários e vulnerabilizados. Já o  racismo ambiental, de acordo com Benjamin Chavis, fica evidente quando as consequências das degradações ambientais se concentram em bairros e territórios periféricos, onde vivem famílias mais pobres e onde há maior concentração de pessoas negras [1], indígenas e quilombolas. São também nessas áreas que se concentram os piores índices de poluição do ar e das águas, assim como maior incidência de riscos de inundações e deslizamentos (para citar alguns exemplos), expondo essa população vulnerabilizada aos perigos de desastres naturais e a piores condições de saúde. Complementa-se ao conceito de racismo ambiental a não presença da população negra na elaboração das políticas e na lideranças de movimentos ecológicos, bem como a discriminação da aplicação das leis em territórios racializados.

[1] A população negra é definida pela soma das populações preta e parda pelo Estatuto da Igualdade Racial Lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010.

a crise ambiental no território urbano: três exemplos brasileiros

Nas cidades brasileiras, as famílias de baixa renda se concentram em áreas menos dotadas de infraestrutura e serviços ambientais básicos. Nesses mesmos territórios, se concentram as populações pretas e pardas, assim como os domicílios chefiados por mulheres de baixa renda. Selecionamos três capitais de diferentes regiões brasileiras para exemplificar e demonstrar a vulnerabilidade socioambiental desses grupos no território urbano: Belém (PA) [2] no norte, Recife (PE) no nordeste e São Paulo (SP) no sudeste.

[2] Para favorecer a visualização das áreas mais contíguas de Belém, seus mapas não enquadram toda a extensão territorial do município, deixando de representar o extremo norte (região de Mosqueiro).
Figura 1 – Mapas de Belém (PA) com os dados sobre concentração da população negra, renda média domiciliar, concentração de domicílios cuja pessoa responsável é do sexo feminino com rendimento de até 1 S.M., taxa de cobertura da rede de coleta de esgoto sanitário (Censo IBGE, 2010) e imagem de satélite (ESRI, 2018) com destaque para a mancha urbana.
Figura 2 – Mapas de Recife (PE) com os dados sobre concentração da população negra, renda média domiciliar, concentração de domicílios cuja pessoa responsável é do sexo feminino com rendimento de até 1 S.M., taxa de cobertura da rede de coleta de esgoto sanitário (Censo IBGE, 2010) e imagem de satélite (ESRI, 2018) com destaque para a mancha urbana.
Figura 3 – Mapas de São Paulo (SP) com os dados sobre concentração da população negra, renda média domiciliar, concentração de domicílios cuja pessoa responsável é do sexo feminino com rendimento de até 1 S.M., taxa de cobertura da rede de coleta de esgoto sanitário (Censo IBGE, 2010) e imagem de satélite (ESRI, 2018) com destaque para a mancha urbana.

Existe um padrão recorrente quanto à distribuição territorial da população nestas três cidades brasileiras. A renda é maior nas áreas onde a população residente é mais branca do que negra – observação que poderia, aliás, ser estendida a qualquer outro município brasileiro (IBGE, 2010). Nestas mesmas áreas, [3] as condições de urbanização e saneamento ambiental – definidas pelo abastecimento de água potável, pela coleta de esgoto e de resíduos sólidos e pelas infraestruturas de drenagem – são melhores. [4] Em outras palavras, a distribuição demográfica e racial dessas cidades brasileiras evidencia que a população negra vive em piores condições ambientais e com menos recursos financeiros para lidar com os impactos de eventuais emergências ou desastres – como perdas materiais – o que diminui a capacidade de resiliência local e aumenta sua vulnerabilidade.

Os dados sobre aglomerados subnormais (IBGE, 2010), áreas caracterizadas por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação, reiteram o padrão territorial observado. Nas três cidades estudadas, o percentual de pessoas negras que residem em aglomerados subnormais supera as médias de cada município, evidenciando a tendência de concentração desse grupo nesses territórios.

[3] As “áreas” são setores censitários: unidades territoriais definidas pelo IBGE que agregam os dados coletados pelo Censo Demográfico. Um setor tem um número mínimo e máximo de domicílios, mas não existe uma tamanho padrão, de modo que sua área pode corresponder a de um quarteirão, mas também pode ser equivalente a uma extensa porção da zona rural de um município. Por isso, as representações territoriais de dados censitários podem ser feitas em áreas muito pequenas (nos centros urbanos e áreas mais densas) ou muito grandes (em áreas pouco densas como zonas rurais).
[4] Para demonstração territorial das infraestruturas urbanas de saneamento ambiental, optou-se pelo dado de cobertura de esgotamento sanitário, já que é a variável que melhor expressa a distribuição desigual deste tipo de serviço.
Figura 4 – Localização dos aglomerados subnormais em Belém, Recife e São Paulo (IBGE, 2019) e figura ilustrativa quanto à dimensão de cada município.

Quanto à renda da população residente, parcela considerável tem rendimento médio mensal de até 1 salário mínimo. Ainda,  há uma parcela importante – que varia de 6% a 7% – dos domicílios que não possui rendimento algum. Quanto ao acesso à infraestrutura e aos serviços básicos em aglomerados subnormais, chama a atenção o acesso ao saneamento básico e à energia elétrica. A percentagem de domicílios ligados à rede geral de esgoto ou pluvial é baixa nas três cidades, sobretudo no Recife e em Belém. Em relação à energia, cerca de 3 em cada 10 domicílios não têm acesso à rede de distribuição das concessionárias responsáveis pelo serviço.

aglomerados subnormais (Censo IBGE, 2010)

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Nem mesmo quando a infraestrutura de saneamento existe é possível observar uma isonomia na qualidade de fornecimento dos serviços prestados. O abastecimento de água em todo o município de São Paulo, por exemplo, é um serviço quase universalizado (99%). Entretanto, é notório como a falta de água ou a intermitência do abastecimento são problemas que afetam desproporcionalmente regiões de mais baixa renda, de menor escolaridade, com maior concentração de pessoas pretas e pardas e marcadas por maior precariedade habitacional.

Não é de hoje que o abastecimento de água nas regiões mais pobres da cidade é inconsistente, mas, durante a epidemia de Covid-19, os efeitos nocivos deste problema se agravaram. “Lavar as mãos” e “higienizar superfícies” tornou-se uma ordem social difícil de se cumprir adequadamente nas localidades em que não é garantido o abastecimento de água apropriado.

Um mapeamento colaborativo feito pela Coalizão pelo Clima, durante os meses mais críticos da pandemia em 2020, ajuda a entender como essas populações ficaram impedidas ou tiveram dificuldades em adotar a assepsia e higiene individuais, da forma como autoridades sanitárias recomendaram, visando a prevenção à Covid-19. Regiões periféricas não foram as únicas que registraram intermitência de água, mas foram as que tiveram maior dificuldade de lidar com o problema, visto que a capacidade de contornar deficiências dos serviços de saneamento é muito diferente quando comparada com as condições de famílias de maior renda e localização mais privilegiada.

situação de risco: impactos desiguais no ambiente urbano

Para além da distribuição desigual das riquezas, das infraestruturas e dos serviços  básicos (como abastecimento de água ou esgotamento sanitário), as situação de risco também afetam desproporcionalmente esses grupos populacionais. As áreas de risco são definidas por locais onde a probabilidade de ocorrência de algum evento, como inundação de um corpo d’água ou deslizamento de terra, implica um perigo real, com potencial de destruição, de perdas materiais ou até de vidas, quando consideradas as condições de ocupação do território.

Tais áreas não têm valor para o mercado formal e, por força complementar de legislações, estão fora das frentes de interesse do setor imobiliário. Sua ocupação por famílias de baixa renda, contudo, ocorre pela total falta de alternativas habitacionais. As condições financeiras das famílias de baixa renda são insuficientes para arcar com os custos da moradia no mercado formal – seja para aquisição ou para locação. Ao mesmo tempo, a inexistência de políticas habitacionais, que atendam a demanda das famílias mais pobres, resultam em um processo de urbanização sobre áreas de fragilidade ambiental, em que há sobreposição de outras precariedades do espaço autoproduzido.

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Figura 9 – Dados demográficos da população residente em setores com áreas de risco (ou inseridos em áreas de risco) no município de Belém (Censo, IBGE, 2010 e CPRM, 2021).

A distribuição das situações de risco nas cidades demonstra que a população de baixa renda e negra é a que está mais exposta a inundações e enchentes (risco hidrológico) ou a deslizamentos (risco geológico). Em Belém, as 125 áreas de risco mapeadas (CPRM, 2021) estão relacionadas ao perigo de inundação ou erosão causada pelos corpos d’água e não coincidem com os bairros de maior poder aquisitivo da capital paraense, como Nazaré e Batista Campos, onde também a proporção da população branca é maior. De acordo com os dados do Censo Demográfico (IBGE, 2010), nas áreas com situação de risco, a população negra soma 75% do total, enquanto a média geral de Belém é de 64%. A renda média nos domicílios de setores com alguma área de risco é de R$1,7 mil, 32% menor que a média geral da cidade, de R$2,5 mil. Uma em cada cinco moradias (21%), nas áreas de risco, é chefiada por mulheres de baixa renda (com até 1 S.M.) [5]. Essa taxa é de 16% na cidade de Belém.

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No Recife, os riscos ambientais estão vinculados tanto a perigos hidrológicos, de inundação dos rios, quanto a perigos geológicos, de deslizamentos de terra em áreas de maior declividade. O risco de deslizamento se concentra nas áreas de menor renda de Caxanguá, de Ibura e dos morros da Zona Norte . Ao todo, são 677 áreas com risco geológico. A renda média é de R$1,1 mil por domicílio, a proporção de pessoas negras é de 68% e a taxa de domicílios chefiados por mulheres de baixa renda é de quase 27%.

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Figura 11 – Imagem 3D do a região de Caxanguá, onde há áreas com risco de deslizamento (Google Maps, 2022).

As áreas com risco de inundação, embora apresentem um perfil demográfico relativamente diferente, também se diferenciam do resto da cidade. Elas se concentram nas áreas de mangue em bairros como Afogados, Jardim São Paulo, Iburas e Areias. A população, majoritariamente negra, soma 59% do total, contra 55% do município, e a renda domiciliar é de R$2,1 mil, contra R$2,7 mil da média municipal. Nas áreas com risco de inundação, 22,1% das residências são chefiadas por mulheres que ganham até 1 S.M., enquanto a média recifense é de 19,7%.

[5] Salário mínimo.
Figura 12 – Dados demográficos da população residente em setores com áreas de risco (ou inseridos em áreas de risco) no Recife (Censo IBGE, 2010 e Recife, 2019).

É importante ressaltar que essas localidades não são as únicas áreas próximas de orlas e corpos d’água do Recife. Existem bairros, também cortados por rios, cuja urbanização integrou a ocupação urbana às infraestruturas hídricas, qualificando o território, sem que um elemento fosse nocivo ao outro. A região dos 12 bairros, historicamente ocupada pela elite recifense, não enfrenta a mesma exposição a riscos de inundação como as áreas da regional sul da capital pernambucana.

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Figura 13 – Imagem 3D dos bairros de alta renda Graças, Torre e Santana no Recife (Google Maps, 2022).
[clique na caixa acima para visualizar os dados das áreas de risco no Recife]

No atual cenário de emergência climática e de aquecimento global, o aumento do nível dos mares é um processo que afeta principalmente cidades costeiras como Recife. Seus impactos podem ter proporções ainda inestimáveis, mas certamente ameaçam ainda mais as populações atualmente expostas a riscos hidrológicos e cujo grau de resiliência é muito limitado. 

Figura 15 – Dados demográficos da população residente em setores com áreas de risco (ou inseridos em áreas de risco) em São Paulo  (Censo IBGE, 2010 e MSP, 2021).

Em São Paulo, maior município brasileiro, o mapeamento de riscos geológicos também revela padrões semelhantes ao das outras capitais estudadas. As áreas com perigo de deslizamento ou solapamento do solo somam 1.314 perímetros. A maioria deles se encontra nas zonas norte, sul, diversas áreas da zona leste e também no extremo oeste. As áreas de maior concentração da renda, com baixa porcentagem de pessoas pretas e pardas, são as áreas onde o risco de movimentação de terra apresenta poucas ocorrências.

Famílias que vivem em setores com áreas de risco têm renda domiciliar média de R$1,6 mil, 54% menor que a média municipal de R$3,5 mil. Na cidade de São Paulo, 37% da população é negra, já nas áreas com risco de deslizamento, a proporção é de 55%. Mulheres que ganham até 1 salário mínimo, responsáveis pelo domicílio, são 8,4% da capital paulista, mas 12,6% nas áreas com algum grau de risco geológico.

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Não restam dúvidas de que a injustiça socioambiental e o racismo ambiental também se manifestam através do próprio planejamento urbano, cuja má distribuição de infraestruturas de serviços básicos é definidor das desigualdades estruturantes e vulnerabilidades aos eventos climáticos. A privação do acesso à água potável, a ausência de esgotamento sanitário, assim como as ocorrências de inundações, alagamentos e deslizamentos, também colaboraram com a reprodução das desigualdades urbanas, sociais e raciais nas cidades.

Os impactos das fortes chuvas entre 2021 e 2022 ilustram de forma exemplar e trágica como nossas cidades estão despreparadas às mudanças climáticas e também denunciam a falta de políticas e investimentos públicos para um desenvolvimento urbano mais equânime, que promova melhorias nas infraestruturas territoriais locais e colabore com a mitigação e adaptação do meio urbano às mudanças climáticas.

impactos do racismo ambiental na saúde coletiva

A crise climática e seus impactos ambientais nas cidades não se expressam apenas pela exposição desproporcional de grupos vulneráveis a riscos geológicos ou hidrológicos. No contexto urbano, as injustiças socioambientais e o racismo ambiental também dão conta de produzir efeitos desiguais para a saúde coletiva.

Em 2015, durante uma epidemia da Síndrome Congênita do Zika, [6] que tornou-se emergência internacional, Pernambuco se destacou como foco de transmissão e notificação da doença no Brasil. Recife, sua capital, teve o maior número de casos confirmados no estado. Estudo publicado na Revista Baiana de Saúde Pública em 2021 (Cruz; Cunha; Galindo, 2020) demonstrou que a dispersão territorial da doença seguiu um padrão racial, uma vez que 39% dos casos concentravam-se em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), [7] 87,1% tinham nível de escolaridade até o ensino médio e 75,8% das mães eram negras, tendo entre 19 e 35 anos.

O fato do Recife ser epicentro do surto epidemiológico está relacionado ao fato de a cidade apresentar um sistema de abastecimento de água e de esgotamento precários, sobretudo nas áreas urbanas com menor padrão de renda, maior densidade domiciliar, maior percentagem de população negra e maior percentagem de domicílios de baixa renda chefiados por mulheres. 55% do Recife está ligado à rede de coleta de esgoto. Dentre os aglomerados subnormais da cidade, apenas 40,0% contam com a infraestrutura. A distribuição desigual e insuficiente dos serviços de saneamento faz com que as famílias recorram ao armazenamento de água potável para uso doméstico, criando condições ideais para a reprodução do mosquito Aedes Aegypti e, consequentemente, para o aumento do risco de transmissão de doenças vetoriais. [8]

[6] A Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika (SCZ) compreende um conjunto de anomalias congênitas que podem incluir alterações visuais, auditivas e neuropsicomotoras que ocorrem em indivíduos (embriões ou fetos) expostos à infecção pelo vírus Zika durante a gestação.
[7] As ZEIS são uma categoria de zoneamento que permite o estabelecimento de um padrão urbanístico próprio com regras especiais, para determinadas áreas da cidade visando a construção de moradia popular ou urbanização e regularização fundiária de assentamentos informais de baixa renda.
[8] Doenças transmitidas por vetor são aquelas que não passam diretamente de uma pessoa para outra, prescindindo da participação de artrópodes, principalmente insetos, responsáveis pela veiculação biológica de parasitos e microorganismos entre outros seres vivos.
Figura 17 – Internações por Município segundo raça/cor, gênero e faixa etária da população internada por doenças vetoriais. (DATASUS, 2021).

O risco a essas doenças é maior em populações vulneráveis dada sua exposição a condições precárias de saneamento. Trata-se, no entanto, de uma realidade que pode ser constatada em diferentes contextos urbanos brasileiros. A ausência e/ou precariedade desses serviços básicos também expõe essa mesma população a doenças infecciosas de veiculação hídrica. Em um contexto de crise climática, esses riscos são amplificados em razão da contaminação das águas por microorganismos e do aumento de vetores, hospedeiros e patogênicos (Barcellos, 2022). A análise dos dados de Belém, Recife e São Paulo (DATASUS, 2021) sobre internações por doenças vetoriais [9] e/ou doenças infecciosas de veiculação hídrica permite traçar o perfil da população mais impactada. [10]

As crianças, de até 14 anos, são o grupo mais afetado por essas doenças, principalmente aquelas de veiculação hídrica. Belém se destaca, com 98,4% das 2.377 da população internada por doenças de veiculação hídrica correspondendo a essa faixa etária. Na capital paraense, 65,6% desse universo diz respeito a crianças de até 4 anos. No Recife e em São Paulo, a parcela da população de até 14 anos internada por complicações de doenças de veiculação hídrica corresponde a 66,4% das 301 pessoas internadas e 68,6% das 1.539 internações, respectivamente. 

[9] Foram analisadas internações por morbidade conforme classificação da lista CID-10 do SUS: Febre amarela, Dengue [dengue clássico], Febre hemorrágica devida ao vírus da dengue, Restante de outras febres por arbovírus e febres hemorrágicas virais (como as causadas por Zika vírus e a chikungunya), Malária por Plasmodium falciparum, Malária por Plasmodium vivax, Malária por Plasmodium malariae, Outras formas malária conforme exames parasitológico e Malária não especificada.
[10] Foram analisadas internações por morbidade conforme classificação da lista CID-10 do SUS: Cólera, Febres tifóide e paratifóide, Shiguelose, Amebíase, Diarréia e gastroenterite origem infecc presumível,  e Esquistossomose.
Figura 18 – Internações por Município segundo raça/cor, gênero e faixa etária da população internada por doenças de veiculação hídrica. (DATASUS, 2021).

Em relação à raça, constata-se que a população negra de Belém e do Recife é, desproporcionalmente, mais acometida por essas doenças. Das internações notificadas nessas duas cidades por agravamento de doenças vetoriais em 2021, 51,5% e 53%, respectivamente, eram de pessoas pretas ou pardas. No caso das doenças de veiculação hídrica essa percentagem sobe para 66% em Belém e para 64,1% no Recife. [11]

A capital paraense totalizou 2.377 internações por doenças de veiculação hídrica em 2021. O acesso precário e desigual ao abastecimento de água e à coleta de esgoto ajudam a entender o quadro. Dados do Censo 2010 mostram que apenas 30,3% dos domicílios localizados em aglomerados subnormais de Belém são atendidos pela rede geral de esgoto. Em relação ao abastecimento de água, 77,4% dos 193.414 domicílios estão conectados à rede geral de distribuição. 

Embora os dados epidemiológicos de doenças de veiculação hídrica em São Paulo não indiquem, a princípio, um padrão demográfico como de Belém ou Recife, as 1.539 internação da capital paulista (em 2021) também estão relacionadas ao problema do saneamento básico deficiente. A cobertura da coleta de esgoto em aglomerados subnormais da capital paulista atende apenas 2 de cada 3 domicílios (67,4%). Trata-se de uma cobertura muito insuficiente que também penaliza territórios de mais baixa renda, onde predominam famílias negras.

[11] A taxa de subnotificação para a variável raça/cor da pele é alta. Quanto às doenças vetoriais, 48,5% dos casos de Belém, 42,8% do Recife e 22% de São Paulo não registraram essa informação do paciente. No caso das doenças de veiculação hídrica, a subnotificação da raça/cor da pele corresponde a 27,2% dos casos em Belém, 30,9% no Recife e 25% em São Paulo. Apesar da má qualidade de preenchimento, os números ainda têm seu valor indicativo e sugerem um impacto desfavorável à população preta e parda, em relação à população branca.

a contradição das ocupações em áreas de interesse ambiental

O racismo ambiental e as injustiças socioambientais também se materializam através da política, seja através das ausências, que geram os déficits de saneamento básico ou de infraestruturas que reduzem as situações de risco, seja através da atuação direta – através de instituições governamentais e jurídicas – que, por exemplo, penalizam ocupações em áreas ambientais dando celeridade a sua remoção sem qualquer garantia de direitos.

“…é notável a centralidade do discurso do risco geológico e da restrição de uso de áreas apontadas como de alta vulnerabilidade ambiental, razões que aparecem frequentemente articuladas entre si e aplicam-se majoritariamente sobre as favelas…” (Franzoni et al, 2020, p. 96)

Para remover assentamentos informais de famílias pobres, como favelas, o estado tem procedimentos e recursos muito céleres que em nada se parecem com o tratamento dado a áreas ocupadas por outros padrões de urbanização. Nestes casos, o nível de tolerância é maior, seja por parte da legislação, seja por parte dos agentes públicos.

Figura 19 – Imagem de satélite dos assentamentos populares, ou aglomerados subnormais, (IBGE, 2019) e das áreas de risco (PMSP, 2021), com destaque para o Jardim Noronha, ameaçado de remoção, e o Jardim Moraes Prado, local de chácaras, nas mesmas margens da Represa BIllings (área de manancial)

No extremo sul da capital paulista, foram mapeadas 4 ameaças de remoção no Jardim Noronha, [12] às margens de um dos braços da Represa Billings – um dos principais mananciais da Região Metropolitana de São Paulo. As justificativas quanto às fragilidades ambientais (dada pela situação de risco e pela área de mananciais) não foram igualmente mobilizadas para questionar a ocupação do Jardim Moraes Prado, bairro vizinho também colado à represa, com loteamento de chácaras.

Exemplos como esse poderiam ser dados em tantos outros contextos urbanos de cidades brasileiras, uma vez que a legitimidade de determinados padrões urbanísticos, assim como a presença de determinados grupos sociais (e raciais), não é questionada, mesmo que haja uma sobreposição de áreas de interesse ambiental e ocupação urbana. Porém, a discricionariedade da ação pública, que vitimiza famílias de baixa renda e populações marginalizadas, promove a remoção forçada de seus locais de moradia com a justificativa da proteção e do interesse ambientais. Se uma mesma lógica é pretexto para desqualificar e remover algumas pessoas em áreas ambientais, mas, ao mesmo tempo, sequer ameaça a permanência de outras, então está claro que a intervenção pública também é pautada pelo racismo ambiental e consolida aspectos da injustiça socioambiental no meio urbano.

[12] Observatório de Remoções, 2022. Mapeamento colaborativo RMSP (última atualização: janeiro de 2022).

a luta por cidades justas e ambientalmente equilibradas

As injustiças socioambientais são produzidas e reproduzidas cotidianamente. Estão intimamente relacionadas ao espaço urbano e às formas como politicamente o produzimos. Por isso, é fundamental conectar as necessidades materiais da vida urbana (como o acesso à moradia, a serviços e infraestruturas) a agendas comprometidas com o enfrentamento das desigualdades territoriais, que proponham mudanças no modelo de desenvolvimento urbano-ambiental, mas também incidam na defesa dos direitos humanos e do próprio regime democrático. A luta pelo direito à cidade tem sido uma importante força de articulação dessas dimensões, sem prejuízo algum às questões ambientais. Na agenda do direito à cidade, nenhuma pessoa ou grupo étnico, racial ou social no meio urbano deve ser desproporcionalmente impactado por desastres ambientais ou eventos climáticos.

As populações mais vulneráveis e impactadas pelas degradações ambientais também são àquelas historicamente excluídas dos processos políticos e decisórios. Por isso, é fundamental aumentar e qualificar a representatividade de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+. É urgente que agendas e candidaturas comprometidas com pautas voltadas às garantias de direitos das populações mais vulneráveis ganhem mais espaço na política, para enfrentar os inúmeros desafios colocados e produzir transformações reais.

Três grandes cidades brasileiras foram analisadas, no entanto as questões retratadas não são exclusivas dessas localidades e estão presentes nos mais diversos contextos urbanos do país. É verdade que as problemáticas descritas e mapeadas se manifestam na escala local, da cidade, e estão diretamente conectadas ao planejamento e à administração municipal, mas não só. Outras esferas de poder, em nível estadual e federal, também devem atuar na proteção dos grupos mais vulnerabilizados e corrigir os déficits urbanos no Brasil. 

No âmbito federal, um exemplo recente sobre a atuação do legislativo quanto à temática urbana e ambiental é o novo marco regulatório do saneamento básico. A lei foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2020 e amplia a participação do setor privado no fornecimento dos serviços de água, esgoto, coleta de resíduos sólidos e drenagem pluvial. O novo marco tem potencial de agravar a precariedade na prestação dos serviços de saneamento, especialmente nas áreas em que o déficit é maior, por não serem localidades atrativas economicamente ao setor privado. Na medida que o direito à água, ao saneamento e à cidade são deturpados e transformados em bens, unicamente ofertados pela iniciativa privada, as possibilidades de construir uma política de universalização de serviços urbanos e ambientais básicos, orientada pela perspectiva de raça, gênero e classe social, se reduzem drasticamente.

Parlamentares atuam de diversas maneiras para incidir sobre as injustiças socioambientais, podendo combatê-las ou agravá-las. O Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) produziu boletins [13] que analisam a atuação de congressistas na atual legislatura, segundo sexo e raça/cor autodeclarada. Enquanto “Agricultura e Pecuária” é o tema mais frequente entre proposições de parlamentares de raça/cor branca, “Meio Ambiente” e “Direitos Humanos e Minorias” foram os temas mais mobilizados por parlamentares de raça/cor parda e preta, respectivamente. Existe, portanto, uma grande diferença entre os temas que mais mobilizam representantes negros e negras em comparação a brancos e brancas. 

Quanto ao tema da “Igualdade racial”, (a) deputadas mulheres, (b) parlamentares de raça/cor negra e (c) representantes de menor escolaridade demonstraram engajamento muito maior com a temática, em comparação a outros segmentos. Na contramão, deputados homens e brancos foram avaliados como os mais aversos ao tema. Atualmente, a Câmara dos Deputados e Deputadas Federais não reflete a composição da população brasileira, visto que pessoas negras, indígenas e mulheres são sub-representadas. Mulheres negras, que representam quase ⅓ da população brasileira, somam apenas 2,5% das cadeiras da Câmara. Já homens brancos, que são 20,3% dentre brasileiros(as), comam 62,6% dos mandatos em exercício.

Em outras palavras, quanto menos representativos são os espaços políticos (o que inclui o poder legislativo), menores são as aberturas a agendas de transformação comprometidas com os direitos das populações mais vulneráveis. Por isso, é necessário aumentar a representatividade no Congresso, qualificando sua composição com candidaturas que estejam e comprometidas com pautas antirracistas e antipatriarcais, em consonância com com as agendas do direito à cidade e da justiça urbana, ambiental e social.

A construção de uma composição mais representativa e mais progressista no Congresso Nacional é essencial para alavancar as agendas do direito à cidade e da justiça socioambiental. Isso porque é no legislativo federal que propostas importantes são debatidas e votadas. Câmara e Senado discutem e fiscalizam orçamento federal, priorizam políticas públicas acelerando ou retardando debates em comissões e votações no plenário, aprovam projetos de lei ou emendas à Constituição, além de monitorar o exercício dos demais poderes. Também vale mencionar que caberia aos mandatos parlamentares colaborar com a articulação federativa, entre estados e municípios, para promover melhorias na qualidade de vida da população, sobretudo dos grupos mais vulnerabilizados. 

Pensar, debater, propor e implementar outros modelos de desenvolvimento econômico, de distribuição de bens e serviços, de financiamento das políticas públicas, de utilização e preservação dos recursos naturais, de uso e ocupação do solo urbano são desafios urgentes e necessários à redução das desigualdades nas cidades e das injustiças socioambientais.

As agendas do direito à cidade e pela justiça ambiental contam com o apoio das lutas sociais nas ruas, da organização popular e coletiva, mas também devem ser encampadas em espaços institucionais. As transformações que desejamos para as cidades também devem ser acompanhadas de mudanças na política. 

Portanto, inserir mulheres negras, indígenas e pessoas trans, representantes de grupos historicamente excluídos e invisibilizados desses espaços decisórios e políticos, é uma mudança substancial para a promoção de cidades mais justas, democráticas, ambientalmente mais equilibradas e com mais qualidade de vida. Eleger mulheres negras, indígenas e pessoas trans também é combater as injustiças socioambientais e o racismo ambiental.

equipe

Coordenação de projeto

  • Danielle Klintowitz

Produção técnica

  • Vitor Nisida
  • Lara Cavalcante
  • Maria Gabriela Feitosa dos Santos

Apoio técnico

  • Ana Sanches
  • Clauber Leite
  • Pedro Lacerda
  • Tama Savaget

Revisão

  • Bianca Alcântara
  • Inara Novaes (estágio)

dados abertos