remoções forçadas: uma outra camada de risco à pandemia

remoções forçadas: uma outra camada de risco à pandemia março 2022

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Na contramão das já conhecidas recomendações centrais ao enfrentamento da emergência sanitária, o cumprimento de medidas judiciais e administrativas que resultam em remoções e despejos forçados foi observado em todos os estados do país. Só na cidade de São Paulo, entre março de 2020 e dezembro de 2021, de acordo com o mapeamento realizado pelo Observatório de Remoções [1], foram mais de 760 denúncias de ameaças de remoções e 34 denúncias de remoções totais ou parciais, envolvendo, pelo menos, 2.719 famílias removidas e 197.368 famílias ameaçadas.

Com o objetivo de frear os despejos em meio a pandemia, um conjunto amplo de movimentos sociais, universidades, organizações da sociedade civil, entidades,  mandatos eleitos, etc, organizaram, em 2019, a Campanha Despejo Zero. Através de núcleos estaduais e grupos de trabalho, a campanha tem desenvolvido o monitoramento dos casos de ameaça e remoção por todo o país, além da incidência focada na suspensão total dos despejos. Uma vitória importante da articulação da Campanha foi o deferimento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que diz respeito à suspensão de despejos em meio a pandemia. A ADPF 828, apesar de não impedir despejos individuais, garantiu que, ao menos, 11.280 famílias fossem protegidas da violência imposta pela remoção. A medida tem validade até março de 2022 e precisa, urgentemente, ser prorrogada devido ao aumento do contágio e mortalidade pela Covid-19.

O objetivo deste estudo é caracterizar as vulnerabilidades das famílias que enfrentam a ameaça constante de remoção frente à emergência sanitária – em que a moradia é uma estrutura básica para a adoção de medidas de prevenção -, novas camadas de risco são adicionadas, dificultando ainda mais a reprodução da vida. Para essa análise foram utilizados dados do Observatório de Remoções, dados da mortalidade por Covid-19 no Município de São Paulo (MSP) entre 2020 e 2021 e dados do Censo Demográfico do IBGE.

[1] O Observatório de Remoções é uma rede composta por: Labcidade (FAUUSP), Praxis (UFMG), Laboratório de Estudos da Habitação – LEHAB (UFC), Lugar Comum (UFBA), Grupo de Pesquisa Labá – Direito, Espaço & Política, da FND (UFRJ), Laboratório de Justiça Territorial – LabJuta (UFABC), Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais – LEPUR (UFABC) e Observatório de Conflitos Fundiários do Instituto das Cidades (UNIFESP)

quem são as famílias que enfrentam a insegurança da posse, em plena pandemia?

O Observatório de Remoções tem, desde 2015, mapeado as ocorrências e ameaças de remoções na Região Metropolitana de São Paulo. O mapeamento é realizado através de dados oficiais, clippings, pesquisas de campo e denúncias de parceiros. Vale ressaltar que apesar do grande volume de casos coletados, existem ocorrências que não são mapeadas, seja pela falta de acesso aos canais de comunicação, ou pela rapidez da execução das ações, o que resulta em um número subestimado e, na prática, ainda maior.

Para este estudo, foram consideradas as denúncias de casos de (i) ameaçadas de remoção que não foram suspensas e (ii) remoções totais ou parciais, ocorridas durante a pandemia, totalizando 794 casos, correspondentes a, pelo menos,  200.087 famílias.

Apesar da inexistência de uma base com dados específicos sobre as famílias vulneráveis à insegurança da posse no MSP, é possível traçar um perfil com indicadores socioeconômicos a partir das localidades das famílias ameaçadas ou removidas. A construção deste perfil utilizou variáveis do Censo Demográfico e permitiu a caracterização geral dessa população, a partir do território que habitam. [2]

É possível observar que, em comparação ao município de São Paulo como um todo, o perfil socioeconômico do grupo de análise sempre apresenta indicadores mais frágeis, caracterizando vulnerabilidades em diversas camadas. São famílias cuja renda média domiciliar é consideravelmente inferior à média municipal, com um percentual maior de domicílios de baixa renda chefiados por mulheres e acesso abaixo da média a infraestrutura básica (água encanada e esgotamento sanitário). Além disso, a participação de pessoas pretas e pardas é majoritária, grupo populacional que apresenta as maiores taxas de mortalidade por Covid-19 desde o início da pandemia.

Esses indicadores revelam que o recorte populacional analisado não se tornou vulnerável apenas por conta da emergência sanitária. São pessoas que apresentam piores condições gerais de vida e que, portanto, aplicar medidas específicas para a proteção deste grupo deveria compor o rol de estratégias chave para o controle da pandemia.

[2] O método de análise considerou todos os setores censitários que continham ameaças de remoção não suspensas e remoções totais ou parciais ocorridas durante a pandemia. A partir dessa seleção, os indicadores foram construídos utilizando as variáveis do Censo Demográfico do IBGE. Entende-se que os dados continuam representativos, mesmo tratando de informações coletadas em 2010, A leitura dessas informações é uma proxy do contexto atual do Município de São Paulo.

o que contribui para piores condições de enfrentamento à pandemia?

Desde o início da pandemia, a espacialização das taxas padronizadas de mortalidade por Covid-19 evidencia os efeitos desiguais da pandemia a depender da localidade na cidade. Essas diferenças nos levam a investigar o que contribui para os riscos de infecção e no desenvolvimento da doença com maior gravidade – como casos que terminam em óbitos. Como são as condições gerais de vida que caracterizam as áreas de maior mortalidade?

Ao selecionar as áreas que possuem as taxas de mortalidade mais altas do município de São Paulo, é possível construir um outro grupo de análise e aplicar a mesma metodologia anteriormente descrita. [3] A construção do perfil socioeconômico das áreas mais atingidas pela mortalidade nos aponta evidências do que contribui para o maior risco de infecção e, no limite, ao óbito.

[3] Assim como o método de análise anterior, a construção dos indicadores socioeconômicos deste grupo considerou as áreas de ponderação com as maiores taxas de mortalidade por Covid-19 no município de São Paulo. A partir dessa seleção, os indicadores foram construídos utilizando as variáveis do Censo Demográfico do IBGE. Entende-se que os dados continuam representativos, mesmo tratando de informações coletadas em 2010, A leitura dessas informações é uma proxy do contexto atual do município de São Paulo.

As áreas de maior mortalidade também apresentam piores indicadores, em comparação ao município. São regiões com renda média domiciliar inferior à municipal, maior proporção de domicílios de baixa renda chefiados por mulheres, maior densidade domiciliar e uma participação maior de pessoas negras. Maiores rendimentos estão associados ao maior acesso a serviços de saúde, além de melhores condições de habitabilidade e possibilidade de isolamento – fator determinante para o maior risco à infecção. 

A comparação dos perfis socioeconômicos das áreas com ameaças e remoções e das áreas com maior mortalidade por Covid-19 revelam semelhanças. Ambas distanciam-se das médias gerais da cidade, e confirmam-se como regiões de maior vulnerabilidade.

As análises estatísticas demonstraram que existe uma forte correlação [4] entre menores rendimentos e altas taxas de mortalidade por Covid-19. Quanto maior o poder aquisitivo, menores as taxas de mortalidade, ou quanto maior o percentual de domicílios de baixa renda chefiados por mulheres, maiores as taxas de mortalidade. Esses fatores ajudam a caracterizar os Determinantes Sociais da Saúde [5], que explicam essas diversidades como condicionantes de saúde. O cenário pandêmico alarmou a urgência da necessidade de incluir na visão do processo saúde-doença os múltiplos fatores que influenciam as condições como determinados grupos nascem, vivem, adoecem e morrem.

É importante destacar que ambos os grupos possuem maior participação da população negra. A Covid-19 não faz qualquer distinção biológica de raça/cor, no entanto a população negra está mais exposta às condições que contribuem para o acesso desigual à saúde e maior mortalidade. No caso das áreas ameaçadas ou removidas, a população negra é majoritária porque historicamente ocupa regiões com condições urbanas e habitacionais mais precárias. Nas duas situações vemos as influências dramáticas do racismo nas condições gerais de vida dessas populações. Perde-se sentido, então, falar somente da dimensão biológica do vírus, quando a raça determina aproximação ou distanciamento da doença.

[4] A correlação a que o texto foi testada segundo o método de Pearson (correlação linear) a partir de variáveis agregadas por áreas de ponderação.
[5] A concepção sobre os Determinantes Sociais em Saúde propõe uma visão ampliada do processo saúde-doença, conectando os múltiplos fatores que influenciam no adoecimento, a fim de evitar uma abordagem fragmentada dos problemas de saúde. Condições de vida, bem-estar social, distribuição de renda, condições de trabalho, acesso à redes de suporte social e ao sistema de saúde são alguns dos elementos a serem considerados. Essa concepção é importante para entender como a saúde é um processo integrado e atua como um parâmetro para a busca de justiça social, tendo em vista as condições desiguais nas quais determinados grupos nascem, vivem, adoecem e morrem. (GALVÃO, et al., 2021.)

O acompanhamento e a vigilância da pandemia no território permitem a identificação das áreas mais afetadas, seja pela alta concentração de óbitos [6] ou por apresentar altas taxas de mortalidade [7]. É fundamental que o enfrentamento à pandemia considere essa dimensão espacial da Covid-19, fazendo uso das ferramentas de análise territorial porque a partir delas é possível obter dados para orientar o controle epidemiológico, além do cruzamento com outras informações.

A comparação entre as áreas mais impactadas por Covid-19 e as áreas que concentram ameaças ou remoções revela algumas semelhanças. Em algumas regiões há sobreposições, tanto em relação às concentrações de óbitos, quanto às áreas com altas taxas de mortalidade, demonstrando camadas de vulnerabilidades dos moradores destes territórios. Como colocado anteriormente, o perfil socioeconômico das áreas com ameaças ou com remoções destaca a vulnerabilidade já existente. Portanto, dar prosseguimento em uma ação de despejo, em plena emergência sanitária, contribui para a adição de mais uma camada de risco a essas famílias. 

A proteção desses grupos que são caracterizados como mais vulneráveis à pandemia, pelos diversos fatores apresentados, deveria ser uma prioridade na definição das medidas de enfrentamento.

[6] As concentrações de óbitos são analisadas a partir de mapas de calor, construídos pelo método da estimativa de densidade de kernel, que calcula, a partir de vários pontos no espaço, a probabilidade de ocorrência de determinado fenômeno. Quanto maior a intensidade de cor, maior a chance de ocorrência do fenômeno analisado. A sobreposição entre as concentrações de óbitos e concentrações de ameaças e remoções revela que algumas áreas são coincidentes, indicando, nestes casos, uma maior probabilidade de ocorrência de óbito por Covid-19 e ameaça de remoção, ao mesmo tempo.
[7] As taxas de mortalidade analisadas passaram pelo processo de padronização: um tratamento estatístico utilizado na epidemiologia, que permite a comparação da mortalidade entre grupos populacionais de composições etárias distintas.

deslocamentos forçados e os riscos à contaminação

A consequência imediata do deslocamento forçado de um grupo populacional é o espalhamento das famílias em variadas localidades e situações habitacionais diversas, que incluem: famílias que ficam desabrigadas e passam a viver em situação de rua; locais mais precários de moradia; e até habitações superlotadas aumentando o risco de contaminação por Covid 19. 

Outro fator desencadeado pela remoção é o rompimento do vínculo com o território. Além de desabrigadas, o acesso a serviços públicos fica prejudicado, especialmente àqueles vinculados à região de moradia, como escolas e postos de saúde. Em tempos de pandemia, são equipamentos que têm um papel essencial na proteção da infecção. As escolas, mesmo em momentos sem atividades presenciais, prestam uma assistência importantíssima, tornando-se centros de aplicação da vacina e acompanhamento da saúde (física e mental) dos estudantes. As Unidades Básicas de Saúde mantêm uma relação próxima com os territórios – especialmente em locais marcados por vulnerabilidades sociais -, além do acompanhamento de pessoas com comorbidades. Além disso, o território carrega consigo significados subjetivos e coletivos. Esse rompimento também resulta na quebra da rede de apoio comunitária, que se demonstrou especialmente preciosa em tempos pandêmicos, tendo em vista o trágico cenário de redução da renda e adoecimento. 

Assim, remoções forçadas, além de serem uma ameaça individual para a saúde das populações, podem potencializar novas cadeias de contágio, contribuindo para o agravamento dos indicadores da pandemia na cidade. Um estudo realizado nos Estados Unidos propôs um modelo de análise que demonstrou o efeito dos despejos (evictions) no aumento da transmissibilidade do Sars-Cov-2.

Apesar do fenômeno das remoções ter características diferentes do cenário brasileiro, algumas similaridades podem ser observadas. Com o agravamento da crise econômica, em decorrência da pandemia, diversas famílias passaram a não conseguir arcar com o aluguel e, como consequência, foram despejadas de suas residências. A incapacidade de arcar com o aluguel está atrelada, especialmente, a famílias de baixa renda ou renda intermitente. Além disso, em muitos casos, são famílias mais pobres, de grupos minoritários (negros ou hispânicos), que desempenham atividades que não permitem o isolamento social. 

A partir da análise do modelo, o estudo conclui que o despejo gera a necessidade de se acomodar em algum outro lugar, o que leva à superlotação de outros domicílios, já que as famílias recorrem às suas relações sociais (amigos ou outros familiares). Como consequência, há o aumento da taxa de infecção intradomiciliar. Assim, criam-se novas cadeias de transmissão do vírus que, antes das remoções, não existiam, potencializando a taxa de transmissão no município como um todo. Se antes das remoções, era possível identificar concentrações territoriais de maior contágio e mortes devido à pandemia, com o deslocamento das famílias removidas esta concentração se dispersa na cidade, dificultando medidas de busca ativa para vacinação e outras medidas de prevenção. 

O estudo também concluiu que a suspensão das remoções nos EUA (seja por medidas locais ou estaduais) foi responsável pela prevenção de um grande volume de casos de Covid-19 em 2020. Ou, ao menos, pela diminuição relativa da velocidade de contágio. Mesmo em cidades cuja taxa de transmissão observada representasse um cenário grave, caso as remoções não tivessem sido suspensas, a situação poderia ter sido ainda pior.

a adpf e o caráter violento das ameaças e remoções

Apesar de voltada à suspensão de “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia”, cerca de 710 famílias [8], ficaram desabrigadas na cidade de São Paulo, desde o deferimento da ADPF 828, em junho de 2021, por parte da Suprema Corte.

Dentre os casos ocorridos e coletados pelo Observatório de Remoções, fica evidente o caráter violento das ações. Há casos em que os despejos não possuíam qualquer processo judicial; medidas administrativas cumpridas por subprefeituras; decisões favoráveis por parte do TJSP, sem qualquer planejamento para o acolhimento das famílias, ou assistência social; casos cujas famílias tiveram seus pertences destruídos ou queimados, lideranças sociais que foram perseguidas, e outras violações. São ações desumanas que desconsideram por completo o estado de emergência sanitária e aconteceram mesmo com a ADPF.

A prorrogação do prazo de vigência é essencial. Neste momento, é uma medida estratégica para a preservação de vidas. Com a chegada da variante ômicron, voltamos a observar altas taxas de contágio e de mortalidade. Porém, para além da prorrogação do prazo, é necessário garantir a aplicação, de fato, por outras instâncias além do judiciário. Do contrário, estaremos normalizando ações violentas que oferecem risco à vida, durante a pandemia.

[8] Dados do Observatório de Remoções, 2022.

equipe

Este estudo é uma colaboração entre:

  • Danielle Klintowitz, arquiteta urbanista e coordenadora geral do Instituto Pólis;
  • Vitor Nisida, arquiteto urbanista e pesquisador do Instituto Pólis;
  • Lara Cavalcante, arquiteta urbanista e pesquisadora do Instituto Pólis;
  • Deivison Faustino,  professor do PPGSSPS da UNIFESP e pesquisador do Instituto Amma Psique e Negritude;
  • Olinda Luiz, pesquisadora do HCSP e professora colaboradora da FMUSP;
  • Jorge Kayano, médico sanitarista e pesquisador do Instituto Pólis. Participa do Coletivo Intersetorial pela Vida em São Paulo.
  • Isabella Alho, estudante de engenharia ambiental e urbana da UFABC e estagiária do Instituto Pólis;
  • Maria Barbosa, assistente social e mestranda do PPGSSPS da UNIFESP.

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