“Para entender a pandemia à moda brasileira é preciso conhecer o Brasil”. O texto das pesquisadoras do Pólis, Cássia Caneco, Graciela Medina e Jéssica Tavares reflete sobre como as desigualdades de raça, gênero e classe constroem diferentes narrativas de futuro pós-pandemia no país.
“Enquanto vivemos a coronacrise, uma outra nos assombra cotidianamente: a naturalização dos abismos entre as condições de vida. A hierarquização da cidadania, daltônica, impede dizer a raça/cor das filas na porta das agências da Caixa Econômica. Naturalizar diferenças não somente silencia debates de raça no Brasil, mas também atrasa a resposta para transformar boletins de mortes em políticas públicas. Políticas que não sejam higienistas e excludentes. Decoloniais.”
A pandemia do covid-19 acirrou as desigualdades no Brasil. Além do acesso a aparelhos de saúde, os marcadores de classe, gênero e raça mostram quem são as pessoas que tem condições de fazer ou não quarentena, e de seguir as recomendações de higiene e isolamento da Organização Mundial da Saúde.
Pessoas negras são a maioria (60%) das que trabalham informalmente, sobretudo as mulheres negras (IBGE). Com a forte precarização do trabalho, muitas destas pessoas terão de escolher entre ficar sem nenhuma renda, ou sair de casa correndo o risco de ser contaminada ou de propagar o vírus.
O Brasil tem mais de 3 milhões de famílias vivendo em situação de cohabitação, isso é, quando mais de uma família divide a mesma casa e quase 320 mil vivendo em situação de adensamento excessivo, ou seja, quando há mais de 3 moradores dormindo no mesmo cômodo (FGV 2015). Estas situações são mais recorrentes em favelas e cortiços dos grandes centros urbanos, onde cerca de 70% da população é negra.
No município de São Paulo, 11 distritos não tem nenhum leito hospitalar (Rede Nossa São Paulo, 2019). Não é coincidência que estes também sejam os distritos onde moram mais pessoas não brancas e com menor rendimento. Justamente aquelas que mais dependem do SUS.
Em quatro anos, a população em situação de rua em São Paulo cresceu 53%: passou de 15,9 mil em 2015 para 24,3 mil em 2019. Deste total, cerca de 7 mil tem 50 anos ou mais e são ainda mais vulneráveis ao contágio por Covid-19. A falta de acesso a banheiros e saneamento básico dificulta ainda mais a prevenção. Parte dessas pessoas dormem em albergues e por isso não conseguem evitar aglomerações. Afinal, quem tem direito ao isolamento?
O trabalho informal é a forma de rendimento de mais de 40% da toda população trabalhadora do Brasil (IBGE). Esses profissionais ganham cerca de 40% a menos do que pessoas com carteira assinada, e são em sua maioria mulheres negras (60%). Além disso, as condições de moradia de quem trabalha informalmente e tem rendimento menor também são mais difíceis, com menos acesso à saneamento básico, por exemplo. Babás, motoristas de ônibus, motoboys de aplicativos, atendentes de padaria… Essas pessoas estarão mais expostas ao contágio e a disseminação do vírus. Onde essas pessoas moram? Qual o plano do governo para conter essa tragédia anunciada?
Nossa sociedade patriarcal delega às mulheres 75% do trabalho de cuidado não remunerado em todo o mundo (OXFAM, 2020). Ou seja, cabe a elas o cuidado com os familiares, os afazeres domésticos ou os deslocamentos para abastecer a casa, por exemplo. Por conta disso, cerca de 30% das mulheres acabam por deixar seus trabalhos para cuidar dos filhos, enquanto apenas 7% dos homens tomam a mesma decisão. Neste cenário de pandemia, onde crianças foram liberadas das creches e escolas para evitar a disseminação do vírus, e da flexibilização do trabalho com subtração de direitos, quantas mulheres serão forçadas a abdicar dos seus trabalhos e dos seus rendimentos? Como este contexto afetará a vida das mulheres?
Em uma reportagem da BBC Brasil, Gilson Rodrigues, uma das lideranças de Paraisópolis (SP) alerta sobre como as as favelas estão sendo totalmente ignoradas e as políticas de governo, ao invés de melhorar, só agravam a situação. Esta não é uma realidade só de Paraisópolis. Outras favelas de São Paulo, e lideranças de favelas do Rio de Janeiro, como Raull Santiago, têm demonstrado a mesma preocupação em reportagens ou em suas redes sociais.
As 30 cooperativas que prestam serviços à cidade de São Paulo pararam suas atividades pelos riscos de contaminação dos trabalhadores diante da pandemia provocada pelo Coronavírus Covid-19. A cidade tem o maior foco de infecção no Brasil e reúne o maior número de mortes. Essas famílias não tem outra fonte de sustento.
Vale lembrar que os materiais recicláveis – papel/papelão, metais, vidros, plásticos – que a cidade desvia dos aterros sanitários resultam da atividade que essa categoria de trabalhadores desenvolve há mais de 60 anos. Mas, é fundamental destacar que se o setor empresarial – fabricante, distribuidor, comerciante – já tivesse assumido sua responsabilidade pelo custeio da remuneração dos catadores pelo serviço de classificação dos materiais, assim como pelo custeio da coleta seletiva da fração reciclável dos resíduos domiciliares (30%), como determina a Política Nacional de Resíduos Sólidos de 2010, a situação de absoluta vulnerabilidade dessa categoria não estaria acontecendo.
Para colaborar na arrecadação de recursos para compra de cestas básicas para catadores e catadoras de cooperativas de reciclagem, clique aqui.
A epidemia de COVID 19 tem pressionado os sistemas de saúde de todos os países com casos notificados. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes com um sistema de saúde gratuito e universal à toda população. Porém, mesmo antes da epidemia, este sistema já estava sob pressão. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Estas distâncias não afetam da mesma forma a população como um todo. Há diferenças regionais (com a região sudeste liderando o número de leitos e de população), mas também intra regionais e até intramunicipais. O Município de São Paulo, por exemplo, apresentava em 2019 11 distritos sem nenhum leito hospitalar (Rede Nossa São Paulo, 2019). Não é coincidência que estes também sejam os distritos onde moram mais pessoas não brancas e com menor rendimento. Justamente aquelas que, como vimos, mais dependem do SUS.
Para além de superar os desafios regionais, o enfrentamento desta pandemia também têm outro desafio: a Emenda Constitucional 95 aprovada em 2016 e que estabelece um teto para os gastos públicos, inclusive na área da Saúde. Naquela época, muitas ONGs e movimentos já alertavam que ela seria a “PEC da morte”. Devemos reverter esta emenda o quanto antes, ou então, assistiremos nosso corpo médico tendo que fazer escolhas impossíveis: eleger quais serão os pacientes que serão atendidos e quais que serão desassistidos.
No Brasil de 2020 há cerca de 4 milhões de pessoas que moram em domicílios sem banheiro! 4 milhões! Para agravar a situação, 35 milhões de brasileiras(os) vivem sem acesso a água tratada e 100 milhões não possuem rede esgoto, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento em 2018 (SNIS – 2018).
Este cenário é mais estrutural no norte do país, onde cerca de 80% dos domicílios não estão conectados à rede geral de esgoto e no nordeste, onde quase 30% dos domicílios não têm acesso diário à rede de água. Estas duas regiões são aquelas que também abrigam a maior porcentagem de pessoas negras (cerca de 79% da população da região norte e 64,5% da região nordeste é negra) É também mais grave nas favelas e cortiços dos grandes centros urbanos, onde cerca de 70% da população é negra. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Essa realidade, além de comprimir a qualidade de vida, também facilita não só a propagação do COVID 19, como também de outras doenças como tuberculose, por exemplo.
Apesar da quarentena em São Paulo, ainda é possível observar muitas pessoas nos ônibus e metrôs da cidade..
Para termos uma ideia da importância do coletivo no cotidiano da cidade – sobretudo para as mulheres negras que, não só tem o menor rendimento familiar, moram mais longe e dependem mais do transporte e de outros serviços públicos – só na Região Metropolitana de São Paulo são realizadas diariamente 15,3 milhões de viagens seja por trem, metrô ou ônibus (Pesquisa Origem Destino, 2017)
Esta mesma região tem três das dez linhas de trem e metrô mais lotadas do mundo (Google Maps, 2019) e nem todas as estações oferecem condições para que suas usuárias e usuários possam se higienizar, seja porque muitas estações se quer oferecem banheiros públicos, seja porque, as que oferecem, muitas vezes não têm sabonetes e toalhas de papel.
Além disso, o tempo médio destas viagens é de quase 2,5 horas e com pelo menos 1 baldeação. Todos estes fatores aumentam os riscos de contaminação das pessoas que usam diariamente o transporte público e que, no final do dia, ainda terão que chegar em casa e cuidar da casa, dos filhos e, pior, das pessoas mais vulneráveis ao COVID 19, as pessoas idosas da família.
O contágio da covid-19, que antes parecia estar restrito aos que viajaram ao exterior, e nas classes média/alta, passou a se disseminar pelas periferias paulistanas. De acordo com os dados oficiais, o número de mortes decorrentes da covid-19 são maiores nas regiões periféricas de São Paulo.
As periferias enfrentam precariedades que aumentam diretamente a letalidade frente à contaminação. As aglomerações são oriundas das condições habitacionais e do deslocamento casa-trabalho. As condições de higienização ficam comprometidas com a ausência de saneamento básico, e por fim o atendimento insuficiente dos equipamentos de saúde agravam o quadro dos pacientes.⠀⠀⠀
Antes que as pessoas virem números, precisamos dizer quem são esses corpos. Dados do Ministério da Saúde apontam que 23% (menos de um quarto) das pessoas internadas com síndrome aguda respiratória grave são negras (pretas e pardas). Mas a quantidade de pessoas negras que morrem por covid-19 é de 33% (quase um terço!).
Baseado nos poucos dados que são publicados e apesar das subnotificações, construímos uma sequência de mapas que mostram o movimento da pandemia em direção a bairros periféricos da capital paulista, assim como a sua relação com outros aspectos territoriais. Confira abaixo a arte final e siga-nos nas redes sociais (facebook, twitter e instagram) para acompanhar as atualizações nas publicações futuras.
Diante da crise do Coronavírus, Danielle Klintowitz e Felipe Moreira (coordenadora e pesquisador do Instituto Pólis respectivamente) discutem as perspectivas de mudança social durante e depois da fase mais grave da pandemia.
A cobrança de um Estado mais ativo, que tome medidas assertivas e adequadas às profundas desigualdades de nossa realidade, é reivindicação permanente. Além das ações emergenciais, é preciso repensar o modelo liberal de austeridade fiscal para construir uma nova perspectiva de futuro, em que as transformações sociais sejam possíveis.
“Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 produzirá mudanças estruturais em diversas áreas da nossa sociedade. Tudo indica que teremos a curto prazo um futuro desolador. No entanto, caberá à nossa geração e ao nosso tempo decidir se consolidaremos um ‘futuro que repete o passado’ ou se iremos, coletivamente, enfrentar os desafios de acabar com esta pandemia e com a extrema desigualdade. O que será que vamos construir?”
Para conferir o texto na íntegra, publicado no Le Monde Diplomatique, clique aqui.
A indústria da incineração tenta entrar nos sistemas de tratamento de resíduos no Brasil desde o início dos anos 90, sempre com o argumento de que é “a melhor solução” para destinação dos resíduos domiciliares. Inicialmente as tentativas foram na cidade de São Paulo, mas a forte resistência da sociedade organizada não permitiu que isso acontecesse. Mais recentemente, essa investida das incineradoras está acontecendo em várias partes do país.
Com a pandemia do COVID 19, vimos a Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos recomendar ao governo federal, mais exatamente ao Ministro da Saúde, a queima de lixo contaminado. Porém, o texto na verdade indica que o melhor será destruir todos os resíduos urbanos. Destacamos aqui o ponto que diz: “são necessárias medidas para a imediata eliminação do lixo hospitalar, seja por meio da incineração, fornos industriais, ou autoclave, com o objetivo de conter a proliferação do COVID 19…”.
Chama atenção essa colocação sobre o “lixo hospitalar”, como se não houvesse sistema de tratamento operando no país. De fato tem-se diversas formas de tratamento dos resíduos sólidos de saúde sendo implementadas nos municípios e estados brasileiros, conforme vemos no gráfico abaixo (Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil (IBGE/Abrelpe, 2018-2019).
Observando o gráfico, o que é preciso ser feito é resolver os 36,2% dos resíduos de saúde que ainda são destinados sem tratamento prévio para aterros sanitários, valas sépticas e lixões. Isso é “uma coisa” e não cabe absolutamente misturar essa questão com “outra coisa” que é a defesa da queima de todos os resíduos passíveis de reciclagem e compostagem gerados em nossas casas, o que seria um verdadeiro absurdo!
Assim, no médio e longo prazo o que o Brasil espera é que os fabricantes, distribuidores, comerciantes e importadores assumam definitivamente sua responsabilidade, estabelecida na lei de 2010, de garantir o retorno dos 30% dos recicláveis para a cadeia da reciclagem, ou seja, custear os serviços de coleta de recicláveis e a remuneração justa pelo trabalho de classificação feito pelos catadores e suas cooperativas e associações. Às prefeituras caberá investir na estruturação de condições de trabalho dos 800 mil catadores avulsos e organizados, provendo espaços para a triagem com equipamentos adequados. Além disso, já está na hora das Prefeituras implementarem, a partir de hoje, a coleta separada da matéria orgânica e a compostagem dos resíduos residenciais gerados diariamente, dado que essa é sua atribuição. Imaginem 50% do total que geramos a cada dia virando um nutriente natural para regenerar nossos solos, garantindo alimentos saudáveis!
Pelo menos 80% dos resíduos são passíveis de reaproveitamento e poderão incrementar enormemente a cadeia da geração de trabalho e renda e trazer inúmeros benefícios ambientais e para a saúde humana.
Como o Brasil pós-covid 19 tratará os resíduos sólidos urbanos?
A pandemia do COVID 19 desvelou as condições precárias, estruturais de trabalho das cooperativas de catadores. Dada a ameaça de serem infectados pelo vírus, pela falta de condições dignas e adequadas de trabalho, essas trabalhadoras e trabalhadores viram-se em situação de extrema vulnerabilidade e fragilidade e a coleta seletiva operada pelo poder público foi suspensa na grande maioria dos municípios. 80% dos catadores pararam suas atividades. Um grande número de catadores avulsos continuou a coletar materiais nas ruas, correndo sérios riscos de contaminação, por necessidade absoluta de sobrevivência. Essa população, por sua vez, não teve até hoje programas públicos que promovessem sua integração em cooperativas estruturadas.
Leia aqui o texto de Elisabeth Grimberg, coordenadora da área de resíduos sólidos do Pólis, no Archdaily Brasil.
Moção pelo fortalecimento da coleta seletiva
Buscando preservar as condições para continuidade do trabalho dos catadores e de suas associações e cooperativas no contexto da pandemia da COVID-19, o Pólis, junto com outras organizações, apresenta as seguintes considerações e propostas. Leia aqui.
“…há também um vasto território com condições críticas de urbanidade onde moram os ‘longe de tudo’. A população desses lugares tem menor renda, está mais exposta às consequências da crise climática, às muitas horas de deslocamento casa-trabalho, à maior dependência dos serviços públicos, à precarização das condições de moradia e da saúde física e mental, e à Covid-19. A precariedade desses territórios é cotidiana e estruturante”
No primeiro mês da pandemia do Coronavírus no Brasil, o cenário de isolamento e os desafios para o enfrentamento da crise foram tema desta reflexão publicada no Jornal Nexo. Danielle Klintowitz (coordenadora), Jéssica Tavares (pesquisadora) e Felipe Moreira (pesquisador) do Instituto Pólis escreveram para a série Debates em 31 de março, enfatizando a necessidade de medidas especiais e adequadas à gravidade e à dimensão da pandemia, que se soma a tantas outras crises urbanas potencializando os efeitos das desigualdades na cidade.
“Se é verdade que não sairemos os mesmos desta quarentena, também é verdade que precisamos estar atentos para não sairmos “quase os mesmos”, sem resolver problemas estruturais que se agudizam em momentos de crise.”
O fortalecimento do Estado é apontado como caminho não apenas para o combate à crise do Coronavírus, mas também às crises estruturantes que tornam nossas cidades tão desiguais. Para conferir o texto completo, clique aqui.