A luta pelo direito à cidade está em constante transformação e disputa. Este mês, vamos conversar com organizações e coletivos que atuam, cada um a sua maneira, por cidades mais justas.
coletivo ascidadelas Fundado em 2018 e formado por Claudia Ratti (jornalista), Beatriz Santoro (jornalista), Isadora Pinheiro (designer e ilustradora) e Nathalia Parra (designer e artista têxtil), o coletivo busca repensar a cidade a partir de um olhar interseccional, plural e de saberes não convencionais.
Confira nossa conversa:
Vocês se propõem a repensar a cidade a partir de um olhar “interseccional, plural e de saberes não convencionais”. O que isso significa? Como surgiu a ideia do coletivo?
Olhar a cidade a partir de um olhar interseccional e plural significa entender que o território não é igual para todos, ou seja, a vivência na cidade é diferente conforme a sua raça, classe, gênero, orientação sexual e idade, por exemplo. Entender isso é fundamental para compreender de que forma as relações acontecem na cidade e isso é importante para identificar falhas e pensar soluções para uma cidade melhor.
Buscar saberes não convencionais significa dialogar com narrativas que são desconsideradas pelo pensamento branco eurocêntrico. No Cidadelas, construímos um olhar a partir de perspectivas das que sofrem com as exclusões e resgatamos os afetos, pois neles habitam potências de transformação do mundo.
A ideia do coletivo surgiu a partir da necessidade de consolidar um trabalho que começou no nosso projeto de conclusão de curso da faculdade de jornalismo no final de 2017, onde traçamos um panorama da relação das mulheres com a cidade de São Paulo.
Qual é a cidade do futuro que vocês sonham para as mulheres?
Ao falarmos em futuro, não podemos deixar de olhar para o passado. Ao resgatar conhecimentos, descobrimos valores e possibilidades de estar no mundo alternativas às narrativas hegemônicas. Nesse sentido, a cidade do futuro perpassa necessariamente por uma transformação do modo de organizar a vida. Olhar para as necessidades das mulheres, sobretudo negras e periféricas, é um caminho para emergir uma cidade alinhada à emancipação social. Territórios pensados a partir das necessidades locais, valores como partilha e cooperação, poder caminhar sem medo, sem violências e sem impeditivos para transitar são algumas características daquilo que almejamos enquanto cidades do futuro.
Qual livro vocês indicam para quem se interessa por direito à cidade?
Becos da Memória, de Conceição Evaristo. Gostamos de recomendar esse livro porque ele dialoga com um dos pilares do nosso trabalho: saberes não convencionais. Ao resgatar suas memórias da infância em uma favela de Belo Horizonte, a autora revela uma cidade a partir das percepções de uma criança sobre o espaço. Considerar essa vivência, essa experiências pessoal e afetiva, é interessante para entender de que forma se constrói a relação das pessoas com a cidade.
Confira a resposta de mulheres negras e indígenas que articulam-se para o enfrentamento das opressões e organizam as resistências para a construção do bem viver!
Simone Nascimento @simoneehnois é Jornalista, integra a coordenação Estadual do MNU(Movimento Negro Unificado), o movimento RUA Juventude Anticapitalista e a Marcha Das Mulheres Negras de São Paulo.
“Essa cidade do futuro é pra ontem, urgente. Começa com as mulheres negras tendo o direito de falar e construir esse lugar com as tecnologias de sobrevivência e comunidade que o nosso povo tem desenvolvido nos últimos séculos. Em cada bairro desta cidade existem centenas de mulheres negras que sabem de cada detalhe do que acontece com suas comunidades, cada problema e também qual seria melhor a solução. São Paulo é a cidade mais rica do país e a mais desigual. Precisamos construir o bem viver das mulheres negras, isso significa que Justiça social é o mínimo para pensarmos um futuro que não perpetue a violência do estado contra nós. Precisamos de uma cidade em que a PM não pise de botina em nossos pescoços ou mate nossos filhos, irmãos, familiares. Esse futuro digno só existirá se não existir racismo, machismo e miséria, que atravessam nossos corpos. Se tiver direitos para as mulheres negras haverá para todas e todos. Pra começar, uma cidade em que tenhamos direito à cidade! Nós mulheres negras só circulamos na cidade para trabalhar, mas queremos emprego digno, salário igual, moradia, saúde, educação, transporte digno, direito à cultura, sem racismo, sem violência.”
Potyra Guajajara é do povo Guajajara da resistência na Aldeia maracanã, Rio de Janeiro e também artesã indígena.
“Quando a gente fala das cidades primeiro a gente pensa, o que são as cidades hoje? O que a gente espera das cidades? Esperamos que nós indígenas tenhamos nosso lugar, que nossas crianças indígenas tenham também lugar na cidade. Esperamos respeito a nossa cultura. Quando andamos pela cidade as pessoas sempre falam: O que vocês vieram fazer aqui? Respondemos: A gente não veio fazer nada aqui, a gente sempre foi daqui, a gente sempre esteve aqui na cidade, nesse ‘lugar’. A cidade que chegou até nós, não nós que fizemos ou chegamos na cidade. Então é a cidade que tem que aceitar e conseguir de alguma forma incluir todo mundo, ter políticas públicas para todos e respeitar. Na cidade não pode ter racismo contra nós indígenas e contra os negros, não pode ter nenhuma forma de preconceito contra os LGBTQI+, contra as mulheres. É isso que a gente espera da cidades hoje.”
Luana Alves @oiluanaalves é Psicóloga da Saúde Coletiva e Coordenadora da Rede Emancipa.
“Sonho com um mundo em que as mulheres negras não estejam em desvantagem social, econômica, cultural, histórica. E a partir desse mundo, em que as mulheres negras não são colocadas em desvantagem, a cidade é completamente outra. É uma cidade em que a gente pode circular para lazer, para cultura, pra ser feliz, e não só pra trabalhar. É uma cidade que a gente tenha direito a colocar nossa impressão sobre ela, a gente consiga se inscrever nessa cidade não só como trabalhadora, e como base da pirâmide, mas como alguém que pensa a cidade, que faz a cidade culturalmente, que usufrui dela também. Ser produtora, e ser alguém que usufrui, não só como alguém que está construindo o trabalho da base.”
Desde o início da pandemia no Brasil muito tem se debatido acerca dos impactos nos diferentes territórios e segmentos sociais. Algo fundamental tanto para encontrar os melhores meios de prevenir a difusão da doença como de proteger aqueles que estão mais vulneráveis. Entretanto a forma como às informações e os dados têm sido divulgados não auxilia na análise dos impactos territoriais e da difusão espacial da pandemia, dificultando também o seu devido enfrentamento.
Na cidade de São Paulo a escala de análise da pandemia ainda são os distritos, que correspondem a porções enormes do território e com população maior do que muitas cidades de porte médio. Essa visão simplificadora ignora as heterogeneidades e desigualdades territoriais existentes na cidade. Conforme apontamos anteriormente, infelizmente a dimensão territorial não é considerada de forma adequada, prevalecendo uma leitura simplificada e, até mesmo, estigmatizada, como por exemplo quando se afirma ”onde tem favela tem pandemia”.
Em artigo anterior, apresentamos o resultado de pesquisa em outra escala, a da rua. Para tanto mapeamos às hospitalizações e óbitos pós internação pela COVID-19 a partir do CEP – informação fornecida nas fichas dos pacientes hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda e Grave (SRAG) incluindo COVID-19 e disponibilizadas pelo DATASUS até aquele momento (18 de maio de 2020). Esse procedimento permitiu olhar mais detalhadamente para a distribuição territorial da pandemia, e assim evidenciar a complexidade de questões que explicam a sua difusão espacial, não apenas a precariedade habitacional e a presença de favelas.
A partir desta constatação passamos a investigar outros possíveis elementos explicativos, entre eles, a mobilidade urbana durante o período da pandemia, especificamente compreendendo o fluxo de circulação das pessoas na cidade e como isso influencia na difusão espacial da COVID-19. Com base nos dados disponibilizados pela SPTrans sobre dados de GPS dos ônibus, e a partir do roteamento de viagens selecionadas da Pesquisa Origem Destino de 2017, buscamos identificar de onde saíram e para onde foram as pessoas que circularam de transporte coletivo no dia 5 de junho, dia em que, segundo a SPTrans, cerca de 3 milhões de viagens foram realizadas usando os ônibus municipais.
Ao mesmo tempo, fizemos uma leitura territorial sobre a origem das viagens durante o período de pandemia. Para esta análise identificou-se na Pesquisa Origem Destino (2017) as pessoas que usam transporte público como modo principal para chegar ao seu destino, motivadas pela ida ao local de trabalho. Consideramos apenas as viagens realizadas por pessoas sem ensino superior e em cargos não executivos. Esse perfil foi selecionado considerando que pessoas com ensino superior, em cargos executivos e profissionais liberais tenham aderido ao teletrabalho e que viagens com outras motivações, como educação e compras, pararam de ocorrer.. Esses dados de mobilidade foram correlacionados com os dados de hospitalizações por SRAG não identificada, e COVID-19, até o dia 18 de maio, última data para qual o dado do CEP no DATASUS estava disponibilizado pelo Ministério da Saúde.
Desta forma produzimos um mapa que ilustra a distribuição dos lugares de origem das viagens diárias, a partir de uma distribuição que considera número de viagens nas zonas origem-destino e distribuição populacional dentro dessas zonas. O resultado mostra uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens das viagens com as manchas de concentração do local de residência de pessoas hospitalizadas com COVID-19 e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) sem identificação, possivelmente casos de COVID-19, mas que não foram testados ou não tiveram resultado confirmado.
Com base neste estudo, pode-se dizer que, em síntese, quem está sendo mais atingido pela COVID são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar. Embora tenhamos mapeado os locais que concentram os maiores números de origens ou destinos dos fluxos de circulação por transporte coletivo, não é possível ainda afirmar se o contágio ocorreu no percurso do transporte, no local de trabalho ou no local de moradia, o que vai exigir análises futuras, que serão realizadas no âmbito desta pesquisa. Mas o que está evidente é que quem saiu para trabalhar e realizou percursos longos de transporte coletivo é que quem foi mais impactado pelos óbitos ocorridos. Enquanto esse fator mostrou associação forte com os casos de hospitalizações por SRAG não identificada e COVID-19, a densidade demográfica – frequentemente associada a áreas favelizadas e bairros populares – apresentou associação fraca.
Ainda que preliminares, esses dados apontam para a incoerência e inconsequência da abertura planejada pelas prefeituras e governo do estado. A reabertura de comércios e restaurantes implica em aumentar significativamente o número de áreas de origens com mais densidades de viagens e maior circulação de pessoas no transporte público. Se o maior número de óbitos está nos territórios que tiveram mais pessoas saindo para trabalhar durante o período de isolamento, temos que pensar tanto em políticas que as protejam em seus percursos como ampliar o direito ao isolamento paras as pessoas que não estão envolvidas com serviços essenciais mais precisam trabalhar para garantir seu sustento, o que reforça a importância de políticas de garantia de renda e segurança alimentar, subsídios de aluguel e outras despesas, e ações articuladas a coletivos e organizações locais para a proteção dos que mais estão ameaçados durante a pandemia.
Embora esses dados sejam públicos, nos parece que estão sendo ignorados para a definição de estratégias de enfrentamento a pandemia. É urgente repensar a forma como a política de mobilidade na cidade tem sido pensada, já que foram cometidos equívocos tal como o mega rodízio para veículos individuais, que durou apenas alguns dias e provocou uma superlotação nos transportes públicos ampliando os riscos das pessoas que precisavam sair para trabalhar. Ainda não foram implementadas medidas que garantam condições seguras para que as pessoas dos serviços essenciais pudessem fazer as viagens necessárias para exercer seus trabalhos sem ampliar a difusão da infecção do coronavírus. Bem como não existe uma leitura sobre a mobilidade metropolitana – inclusive não existem dados abertos sobre isso – ignorando as dinâmicas pendulares de pessoas que moram e trabalham em municípios diferentes da região metropolitana.
Esse texto é uma parceria do Labcidade e Instituto Pólis. Os autores são: Aluizio Marino, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Raquel Rolnik, Paula Santoro e Pedro Mendonça
“Para entender a pandemia à moda brasileira é preciso conhecer o Brasil”. O texto das pesquisadoras do Pólis, Cássia Caneco, Graciela Medina e Jéssica Tavares reflete sobre como as desigualdades de raça, gênero e classe constroem diferentes narrativas de futuro pós-pandemia no país.
“Enquanto vivemos a coronacrise, uma outra nos assombra cotidianamente: a naturalização dos abismos entre as condições de vida. A hierarquização da cidadania, daltônica, impede dizer a raça/cor das filas na porta das agências da Caixa Econômica. Naturalizar diferenças não somente silencia debates de raça no Brasil, mas também atrasa a resposta para transformar boletins de mortes em políticas públicas. Políticas que não sejam higienistas e excludentes. Decoloniais.”
A pandemia do covid-19 acirrou as desigualdades no Brasil. Além do acesso a aparelhos de saúde, os marcadores de classe, gênero e raça mostram quem são as pessoas que tem condições de fazer ou não quarentena, e de seguir as recomendações de higiene e isolamento da Organização Mundial da Saúde.
Pessoas negras são a maioria (60%) das que trabalham informalmente, sobretudo as mulheres negras (IBGE). Com a forte precarização do trabalho, muitas destas pessoas terão de escolher entre ficar sem nenhuma renda, ou sair de casa correndo o risco de ser contaminada ou de propagar o vírus.
O Brasil tem mais de 3 milhões de famílias vivendo em situação de cohabitação, isso é, quando mais de uma família divide a mesma casa e quase 320 mil vivendo em situação de adensamento excessivo, ou seja, quando há mais de 3 moradores dormindo no mesmo cômodo (FGV 2015). Estas situações são mais recorrentes em favelas e cortiços dos grandes centros urbanos, onde cerca de 70% da população é negra.
No município de São Paulo, 11 distritos não tem nenhum leito hospitalar (Rede Nossa São Paulo, 2019). Não é coincidência que estes também sejam os distritos onde moram mais pessoas não brancas e com menor rendimento. Justamente aquelas que mais dependem do SUS.
Em quatro anos, a população em situação de rua em São Paulo cresceu 53%: passou de 15,9 mil em 2015 para 24,3 mil em 2019. Deste total, cerca de 7 mil tem 50 anos ou mais e são ainda mais vulneráveis ao contágio por Covid-19. A falta de acesso a banheiros e saneamento básico dificulta ainda mais a prevenção. Parte dessas pessoas dormem em albergues e por isso não conseguem evitar aglomerações. Afinal, quem tem direito ao isolamento?
O trabalho informal é a forma de rendimento de mais de 40% da toda população trabalhadora do Brasil (IBGE). Esses profissionais ganham cerca de 40% a menos do que pessoas com carteira assinada, e são em sua maioria mulheres negras (60%). Além disso, as condições de moradia de quem trabalha informalmente e tem rendimento menor também são mais difíceis, com menos acesso à saneamento básico, por exemplo. Babás, motoristas de ônibus, motoboys de aplicativos, atendentes de padaria… Essas pessoas estarão mais expostas ao contágio e a disseminação do vírus. Onde essas pessoas moram? Qual o plano do governo para conter essa tragédia anunciada?
Nossa sociedade patriarcal delega às mulheres 75% do trabalho de cuidado não remunerado em todo o mundo (OXFAM, 2020). Ou seja, cabe a elas o cuidado com os familiares, os afazeres domésticos ou os deslocamentos para abastecer a casa, por exemplo. Por conta disso, cerca de 30% das mulheres acabam por deixar seus trabalhos para cuidar dos filhos, enquanto apenas 7% dos homens tomam a mesma decisão. Neste cenário de pandemia, onde crianças foram liberadas das creches e escolas para evitar a disseminação do vírus, e da flexibilização do trabalho com subtração de direitos, quantas mulheres serão forçadas a abdicar dos seus trabalhos e dos seus rendimentos? Como este contexto afetará a vida das mulheres?
Em uma reportagem da BBC Brasil, Gilson Rodrigues, uma das lideranças de Paraisópolis (SP) alerta sobre como as as favelas estão sendo totalmente ignoradas e as políticas de governo, ao invés de melhorar, só agravam a situação. Esta não é uma realidade só de Paraisópolis. Outras favelas de São Paulo, e lideranças de favelas do Rio de Janeiro, como Raull Santiago, têm demonstrado a mesma preocupação em reportagens ou em suas redes sociais.
As 30 cooperativas que prestam serviços à cidade de São Paulo pararam suas atividades pelos riscos de contaminação dos trabalhadores diante da pandemia provocada pelo Coronavírus Covid-19. A cidade tem o maior foco de infecção no Brasil e reúne o maior número de mortes. Essas famílias não tem outra fonte de sustento.
Vale lembrar que os materiais recicláveis – papel/papelão, metais, vidros, plásticos – que a cidade desvia dos aterros sanitários resultam da atividade que essa categoria de trabalhadores desenvolve há mais de 60 anos. Mas, é fundamental destacar que se o setor empresarial – fabricante, distribuidor, comerciante – já tivesse assumido sua responsabilidade pelo custeio da remuneração dos catadores pelo serviço de classificação dos materiais, assim como pelo custeio da coleta seletiva da fração reciclável dos resíduos domiciliares (30%), como determina a Política Nacional de Resíduos Sólidos de 2010, a situação de absoluta vulnerabilidade dessa categoria não estaria acontecendo.
Para colaborar na arrecadação de recursos para compra de cestas básicas para catadores e catadoras de cooperativas de reciclagem, clique aqui.
A epidemia de COVID 19 tem pressionado os sistemas de saúde de todos os países com casos notificados. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes com um sistema de saúde gratuito e universal à toda população. Porém, mesmo antes da epidemia, este sistema já estava sob pressão. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Estas distâncias não afetam da mesma forma a população como um todo. Há diferenças regionais (com a região sudeste liderando o número de leitos e de população), mas também intra regionais e até intramunicipais. O Município de São Paulo, por exemplo, apresentava em 2019 11 distritos sem nenhum leito hospitalar (Rede Nossa São Paulo, 2019). Não é coincidência que estes também sejam os distritos onde moram mais pessoas não brancas e com menor rendimento. Justamente aquelas que, como vimos, mais dependem do SUS.
Para além de superar os desafios regionais, o enfrentamento desta pandemia também têm outro desafio: a Emenda Constitucional 95 aprovada em 2016 e que estabelece um teto para os gastos públicos, inclusive na área da Saúde. Naquela época, muitas ONGs e movimentos já alertavam que ela seria a “PEC da morte”. Devemos reverter esta emenda o quanto antes, ou então, assistiremos nosso corpo médico tendo que fazer escolhas impossíveis: eleger quais serão os pacientes que serão atendidos e quais que serão desassistidos.
No Brasil de 2020 há cerca de 4 milhões de pessoas que moram em domicílios sem banheiro! 4 milhões! Para agravar a situação, 35 milhões de brasileiras(os) vivem sem acesso a água tratada e 100 milhões não possuem rede esgoto, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento em 2018 (SNIS – 2018).
Este cenário é mais estrutural no norte do país, onde cerca de 80% dos domicílios não estão conectados à rede geral de esgoto e no nordeste, onde quase 30% dos domicílios não têm acesso diário à rede de água. Estas duas regiões são aquelas que também abrigam a maior porcentagem de pessoas negras (cerca de 79% da população da região norte e 64,5% da região nordeste é negra) É também mais grave nas favelas e cortiços dos grandes centros urbanos, onde cerca de 70% da população é negra. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Essa realidade, além de comprimir a qualidade de vida, também facilita não só a propagação do COVID 19, como também de outras doenças como tuberculose, por exemplo.
Apesar da quarentena em São Paulo, ainda é possível observar muitas pessoas nos ônibus e metrôs da cidade..
Para termos uma ideia da importância do coletivo no cotidiano da cidade – sobretudo para as mulheres negras que, não só tem o menor rendimento familiar, moram mais longe e dependem mais do transporte e de outros serviços públicos – só na Região Metropolitana de São Paulo são realizadas diariamente 15,3 milhões de viagens seja por trem, metrô ou ônibus (Pesquisa Origem Destino, 2017)
Esta mesma região tem três das dez linhas de trem e metrô mais lotadas do mundo (Google Maps, 2019) e nem todas as estações oferecem condições para que suas usuárias e usuários possam se higienizar, seja porque muitas estações se quer oferecem banheiros públicos, seja porque, as que oferecem, muitas vezes não têm sabonetes e toalhas de papel.
Além disso, o tempo médio destas viagens é de quase 2,5 horas e com pelo menos 1 baldeação. Todos estes fatores aumentam os riscos de contaminação das pessoas que usam diariamente o transporte público e que, no final do dia, ainda terão que chegar em casa e cuidar da casa, dos filhos e, pior, das pessoas mais vulneráveis ao COVID 19, as pessoas idosas da família.
A luta do Pólis pelo Direito à Cidade não está somente no enfrentamento das desigualdades territoriais evidenciadas pela crise do Coronavírus. Nos últimos tempos, o Pólis vem propondo debates sobre o Direito à Cidade de forma mais interseccional, para aproximar suas utopias às lutas cotidianas. Com o objetivo de mostrar a relação entre ele (o Direito à Cidade) e pautas de transformação social como as bandeiras do feminismo, dos direitos LGBTQI+ ou a luta antirracista, foi produzido um conjunto de materiais informativos, cujo formato permite a apresentação de dados e de uma visão crítica sobre sobre cada tema.
Cada material teve uma tiragem impressa para poder ser distribuído em eventos e ações de rua, mas você pode conferir a versão PDF em nossa biblioteca ou nos links a seguir:
O contágio da covid-19, que antes parecia estar restrito aos que viajaram ao exterior, e nas classes média/alta, passou a se disseminar pelas periferias paulistanas. De acordo com os dados oficiais, o número de mortes decorrentes da covid-19 são maiores nas regiões periféricas de São Paulo.
As periferias enfrentam precariedades que aumentam diretamente a letalidade frente à contaminação. As aglomerações são oriundas das condições habitacionais e do deslocamento casa-trabalho. As condições de higienização ficam comprometidas com a ausência de saneamento básico, e por fim o atendimento insuficiente dos equipamentos de saúde agravam o quadro dos pacientes.⠀⠀⠀
Antes que as pessoas virem números, precisamos dizer quem são esses corpos. Dados do Ministério da Saúde apontam que 23% (menos de um quarto) das pessoas internadas com síndrome aguda respiratória grave são negras (pretas e pardas). Mas a quantidade de pessoas negras que morrem por covid-19 é de 33% (quase um terço!).
Baseado nos poucos dados que são publicados e apesar das subnotificações, construímos uma sequência de mapas que mostram o movimento da pandemia em direção a bairros periféricos da capital paulista, assim como a sua relação com outros aspectos territoriais. Confira abaixo a arte final e siga-nos nas redes sociais (facebook, twitter e instagram) para acompanhar as atualizações nas publicações futuras.
Diante da crise do Coronavírus, Danielle Klintowitz e Felipe Moreira (coordenadora e pesquisador do Instituto Pólis respectivamente) discutem as perspectivas de mudança social durante e depois da fase mais grave da pandemia.
A cobrança de um Estado mais ativo, que tome medidas assertivas e adequadas às profundas desigualdades de nossa realidade, é reivindicação permanente. Além das ações emergenciais, é preciso repensar o modelo liberal de austeridade fiscal para construir uma nova perspectiva de futuro, em que as transformações sociais sejam possíveis.
“Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 produzirá mudanças estruturais em diversas áreas da nossa sociedade. Tudo indica que teremos a curto prazo um futuro desolador. No entanto, caberá à nossa geração e ao nosso tempo decidir se consolidaremos um ‘futuro que repete o passado’ ou se iremos, coletivamente, enfrentar os desafios de acabar com esta pandemia e com a extrema desigualdade. O que será que vamos construir?”
Para conferir o texto na íntegra, publicado no Le Monde Diplomatique, clique aqui.
A indústria da incineração tenta entrar nos sistemas de tratamento de resíduos no Brasil desde o início dos anos 90, sempre com o argumento de que é “a melhor solução” para destinação dos resíduos domiciliares. Inicialmente as tentativas foram na cidade de São Paulo, mas a forte resistência da sociedade organizada não permitiu que isso acontecesse. Mais recentemente, essa investida das incineradoras está acontecendo em várias partes do país.
Com a pandemia do COVID 19, vimos a Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos recomendar ao governo federal, mais exatamente ao Ministro da Saúde, a queima de lixo contaminado. Porém, o texto na verdade indica que o melhor será destruir todos os resíduos urbanos. Destacamos aqui o ponto que diz: “são necessárias medidas para a imediata eliminação do lixo hospitalar, seja por meio da incineração, fornos industriais, ou autoclave, com o objetivo de conter a proliferação do COVID 19…”.
Chama atenção essa colocação sobre o “lixo hospitalar”, como se não houvesse sistema de tratamento operando no país. De fato tem-se diversas formas de tratamento dos resíduos sólidos de saúde sendo implementadas nos municípios e estados brasileiros, conforme vemos no gráfico abaixo (Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil (IBGE/Abrelpe, 2018-2019).
Observando o gráfico, o que é preciso ser feito é resolver os 36,2% dos resíduos de saúde que ainda são destinados sem tratamento prévio para aterros sanitários, valas sépticas e lixões. Isso é “uma coisa” e não cabe absolutamente misturar essa questão com “outra coisa” que é a defesa da queima de todos os resíduos passíveis de reciclagem e compostagem gerados em nossas casas, o que seria um verdadeiro absurdo!
Assim, no médio e longo prazo o que o Brasil espera é que os fabricantes, distribuidores, comerciantes e importadores assumam definitivamente sua responsabilidade, estabelecida na lei de 2010, de garantir o retorno dos 30% dos recicláveis para a cadeia da reciclagem, ou seja, custear os serviços de coleta de recicláveis e a remuneração justa pelo trabalho de classificação feito pelos catadores e suas cooperativas e associações. Às prefeituras caberá investir na estruturação de condições de trabalho dos 800 mil catadores avulsos e organizados, provendo espaços para a triagem com equipamentos adequados. Além disso, já está na hora das Prefeituras implementarem, a partir de hoje, a coleta separada da matéria orgânica e a compostagem dos resíduos residenciais gerados diariamente, dado que essa é sua atribuição. Imaginem 50% do total que geramos a cada dia virando um nutriente natural para regenerar nossos solos, garantindo alimentos saudáveis!
Pelo menos 80% dos resíduos são passíveis de reaproveitamento e poderão incrementar enormemente a cadeia da geração de trabalho e renda e trazer inúmeros benefícios ambientais e para a saúde humana.
Como o Brasil pós-covid 19 tratará os resíduos sólidos urbanos?
A pandemia do COVID 19 desvelou as condições precárias, estruturais de trabalho das cooperativas de catadores. Dada a ameaça de serem infectados pelo vírus, pela falta de condições dignas e adequadas de trabalho, essas trabalhadoras e trabalhadores viram-se em situação de extrema vulnerabilidade e fragilidade e a coleta seletiva operada pelo poder público foi suspensa na grande maioria dos municípios. 80% dos catadores pararam suas atividades. Um grande número de catadores avulsos continuou a coletar materiais nas ruas, correndo sérios riscos de contaminação, por necessidade absoluta de sobrevivência. Essa população, por sua vez, não teve até hoje programas públicos que promovessem sua integração em cooperativas estruturadas.
Leia aqui o texto de Elisabeth Grimberg, coordenadora da área de resíduos sólidos do Pólis, no Archdaily Brasil.
Moção pelo fortalecimento da coleta seletiva
Buscando preservar as condições para continuidade do trabalho dos catadores e de suas associações e cooperativas no contexto da pandemia da COVID-19, o Pólis, junto com outras organizações, apresenta as seguintes considerações e propostas. Leia aqui.
“…há também um vasto território com condições críticas de urbanidade onde moram os ‘longe de tudo’. A população desses lugares tem menor renda, está mais exposta às consequências da crise climática, às muitas horas de deslocamento casa-trabalho, à maior dependência dos serviços públicos, à precarização das condições de moradia e da saúde física e mental, e à Covid-19. A precariedade desses territórios é cotidiana e estruturante”
No primeiro mês da pandemia do Coronavírus no Brasil, o cenário de isolamento e os desafios para o enfrentamento da crise foram tema desta reflexão publicada no Jornal Nexo. Danielle Klintowitz (coordenadora), Jéssica Tavares (pesquisadora) e Felipe Moreira (pesquisador) do Instituto Pólis escreveram para a série Debates em 31 de março, enfatizando a necessidade de medidas especiais e adequadas à gravidade e à dimensão da pandemia, que se soma a tantas outras crises urbanas potencializando os efeitos das desigualdades na cidade.
“Se é verdade que não sairemos os mesmos desta quarentena, também é verdade que precisamos estar atentos para não sairmos “quase os mesmos”, sem resolver problemas estruturais que se agudizam em momentos de crise.”
O fortalecimento do Estado é apontado como caminho não apenas para o combate à crise do Coronavírus, mas também às crises estruturantes que tornam nossas cidades tão desiguais. Para conferir o texto completo, clique aqui.