Com o avanço gradual das etapas de imunização, grupos cada vez mais jovens e mais numerosos se habilitam para a vacinação contra a Covid-19. Mas o fato de a imunização prioritária das faixas etárias mais idosas ter sido minimamente atendida não diminui a necessidade de termos uma priorização criteriosa quanto à vacinação daqui em diante, sobretudo, porque o ritmo de vacinação continua lento e muito aquém do necessário.
O planejamento da imunização e as ações de vigilância e controle epidemiológico não podem ignorar os efeitos desiguais da pandemia sobre a população e é fundamental reconhecer o fator racial como uma determinante social sobre saúde, assim como um elemento-chave nas ações de combate ao coronavírus. Neste sentido, também é importante compreender os efeitos desiguais da pandemia sobre o território, estendendo as análises da mortalidade por Covid-19 através de leituras espaciais.
Há semanas estamos nos aquecendo para um dos aniversários mais esperados de 2021, pois no dia 10 de julho, o Estatuto da Cidade completará duas décadas de existência! É ele que regulamenta o planejamento e execução das políticas urbanas de todas as cidades brasileiras, com a finalidade de assegurar que a função social da cidade e da propriedade sejam devidamente cumpridas, atendendo ao interesso social e ao bem coletivo.
Para celebrar o Estatuto e conhecer mais um pouco de sua história, conversamos com o urbanista Renato Cymbalista que, à época, era pesquisador do Pólis e acompanhou de perto toda a movimentação em torno da aprovação desta Lei Federal. Confira a seguir, a entrevista na íntegra:
Como você descreveria os momentos que antecederam a aprovação do Estatuto da Cidade? Vendo em retrospectiva, no período que antecedeu a aprovação tínhamos a sensação de uma democracia em plena consolidação. Depois da Constituição de 1988 tivemos a aprovação de uma série de leis e regulamentação de sistemas federativos de políticas públicas, como o SUS (Saúde) e o SUAS (Assistência Social). A aprovação do Estatuto da Cidade nos indicava que as áreas de habitação e desenvolvimento urbano estavam no mesmo caminho de construção de um sistema, e isso nos deu muita energia e esperança.
Qual foi a importância dos atores sociais neste processo e como se deu a participação da equipe do Instituto Pólis?
O Estatuto da Cidade tornou lei uma das bandeiras mais importantes do movimento pela reforma urbana, que é a gestão democrática da cidade. Isso significa que todos podem ter voz nos rumos do urbanismo e do planejamento da cidade, principalmente os que sempre foram excluídos das instâncias mais técnicas, os mais pobres. Isso foi possível porque no início do século 21 a gente tinha movimentos de luta por moradia extremamente ativos e organizados em rede, em escala nacional e que puderam, mais do que ocupar esses espaços, construí-los.
A participação da equipe do Pólis no processo foi em dois níveis. No primeiro deles, foi um momento de consagração para os técnicos mais sêniores do Pólis, que estavam lutando pela aprovação do Estatuto há muito tempo, e que estavam experimentando na esfera local muito do que o Estatuto propunha. De um grupo periférico no planejamento, assumiu um lugar de centralidade.
Ao mesmo tempo, o Estatuto foi um momento excepcional para jovens urbanistas e advogados do Pólis, que estavam começando suas vidas profissionais, e tiveram um campo imenso de trabalho e projeção, algo fundamental no inicio de uma carreira profissional. Eu me incluo nesse grupo.
O que se esperava a partir da aprovação do Estatuto? Você diria que essas expectativas foram atendidas ao longo de sua implementação?
Podemos falar de dois tipos de expectativas: a primeira, do copo meio cheio, que esperava a partir do Estatuto ter maiores condições de legalidade para aplicar instrumentos com potencial de democratização da terra urbana, como o Parcelamento e Edificação Compulsórios, o IPTU Progressivo no tempo, as ZEIS, entre outras. Essa expectativa se cumpriu, esses instrumentos são aplicáveis. Por outro lado, expectativas mais utópicas, que esperavam uma revisão estrutural das desigualdades das nossas cidades, se frustraram em grande medida, pois as cidades são tão desiguais quanto eram há 20 anos em vários aspectos.
Quais foram os principais desafios e entraves enfrentados desde a sua criação e quais instrumentos urbanísticos geraram mais conflitos?
Em relação aos desafios e entraves, têm sido muitos. Dentro do próprio campo democrático, o Estatuto e as perspectivas de revisão das práticas de planejamento e planos diretores foi atropelada pelo Minha Casa Minha Vida, que não priorizou a localização central de empreendimentos habitacionais nem desafiou as dinâmicas de especulação com a terra urbana. De um ponto de vista mais administrativo, a aplicação dos instrumentos mais democratizantes como o IPTU Progressivo revelou-se lenta e difícil. E, para finalizar, a onda recente de criminalização dos movimentos sociais colocou sob suspeita o agente mais importante em todo o processo, isso não era esperado há 20 anos.
20 anos depois de sua aprovação, quais são as mudanças notáveis? Você acha que as cidades de hoje são mais democráticas do que as do passado? As cidades mudaram muito nos últimos 20 anos. Vou analisar até a pandemia, porque depois disso o mundo virou de ponta cabeça e não dá para prever muita coisa. Teve mudanças para melhor e para pior. Para melhor, as cidades (pelo menos as maiores) estavam em um caminho de desafiar o transporte individual, tanto pelo caminho das redes de transporte de maior capacidade (corredores de ônibus, metrô, monotrilho) quanto pelos aplicativos, que estavam dando novas possibilidades de estar na cidade, não ter carro não era mais sinônimo de subcidadania. Outra melhoria foi a possibilidade de espaços mais instantâneos e performáticos, como a paulista pedestrianizada em São Paulo ou a Praia de Estação em Belo Horizonte. Esses espaços foram conquistados pela população que quis produzir e ocupar uma cidade, na marra, com diversos graus de adesão do poder público.Por outro lado, esse mesmo movimento de volta à cidade acabou agravando processos de segregação e gentrificação, fechando espaços de moradia para os mais pobres no centro das cidades.
No dia 10 de julho deste ano, o Estatuto da Cidade, a principal lei de regulamentação da política urbana, completará duas décadas. Para celebrá-la, convidamos pessoas que fizeram parte de sua história e mobilizaram-se para que ela fosse aprovada. Vejam a seguir a entrevista que fizemos com Raquel Rolnik, à época coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis:
Como você descreveria os momentos que antecederam a aprovação do Estatuto da Cidade? Quais eram os desafios e expectativas ali presentes?
Na verdade, houve um longuíssimo processo de discussão e negociação para chegar até o Estatuto da Cidade. Esse processo remete desde ali, no processo da Constituinte, onde aquilo que se desejava no âmbito do Movimento pela Reforma Urbana, que era uma constituição que garantisse a função social da cidade e da propriedade, que tivesse instrumentos de enfrentamento do uso da cidade como extração de renda, aquilo que a gente chama de especulação, que pudesse regularizar e eliminar a diferença entre os territórios populares, auto produzidos da cidade, e eliminar os processos discriminatórios aos que esses espaços estão sujeitos, permanentemente, era essa a expectativa, e essa expectativa já encontrou, desde a Constituição Federal, uma resistência muito grande. Uma resistência, de um lado, digamos, do Centrão, alguém que não podia nem ouvir falar na ideia de função social da cidade e da propriedade muito claramente. Uma resistência de natureza ideológica, de defesa da propriedade, de defesa do modelo hegemônico proprietário e da violência proprietária. Mas, também, uma resistência tecnocrática, que tem a ver com a tradição do planejamento urbano, a tradição tecnocrática do planejamento urbano. Deste encontro, saiu a solução da Constituinte. A solução da Constituinte foi: primeiro, jogar para frente a necessidade de uma lei federal e, segundo, vincular a aplicação dos conceitos da função social da cidade e da propriedade, das sanções contra retenção especulativa, aos planos diretores e ao planejamento urbano. Então, isso condicionou o processo de debate e de construção do Estatuto da Cidade. Condicionou no sentido de definir a linguagem da construção do Estatuto, ou seja, é uma linguagem que trabalha, basicamente, com os instrumentos clássicos e históricos do planejamento urbano, dos planos diretores, e que – isso a gente pode dizer, hoje, muito claramente – eles foram desenhados e definidos por e para o mercado imobiliário. Eles dialogam com as morfologias e os produtos imobiliários produzidos por este mercado. Então, essa questão já apareceu na discussão do Estatuto da Cidade. Ao mesmo tempo, também, para discussão do Estatuto da Cidade, como demorou muito tempo (entre 88 e 2001), nos anos 90, a gente tem um outro paradigma, no campo do planejamento urbano, que emergiu com muita força, que é o paradigma neoliberal. A ideia da desregulamentação, a ideia da diminuição do papel e do protagonismo do Estado na condução da estrutura urbana, na condução do processo de desenvolvimento urbano, a abertura para ideias de parcerias público-privadas. Então, o Estatuto da Cidade já é um produto dessas várias posições, ou seja, é um produto das tensões, pressões e reivindicações que vem do Movimento Pela Reforma Urbana, mas, também, no encontro com uma tradição tecnocrática e imobiliária do planejamento urbano, e com novos paradigmas de planejamento que vieram com toda a nova hegemonia neoliberal no planeta, nas cidades, no urbanismo e nas políticas. Então, isso também acabou condicionando a natureza do Estatuto.
Em 2001, a gente já tinha feito movimentos importantes a nível local, experiências importantes a nível local, e o Estatuto da Cidade era uma espécie de passaporte, enquanto não tivesse a tal da Lei Federal, nada daquilo poderia ser implementado. Então, a Lei Federal era meio ‘para limpar a área e poder realmente implementar’. Dessa forma, o Estatuto da Cidade foi celebrado com muita importância. Mas, também, a partir daí, inaugura-se um processo de disputa sobre a leitura do Estatuto e os seus instrumentos, para o que servem e como devem ser implementados.
Na época você era coordenadora de urbanismo do Pólis. Qual foi a participação de coletivos, movimentos e organizações sociais na aprovação do Estatuto?
Eu era coordenadora de urbanismo do Pólis, quando aconteceu a aprovação, e nós imediatamente nos organizamos justamente para disputar uma interpretação de uma forma de uso do Estatuto da Cidade. Então, foi muito importante. Naquele momento, nós conseguimos um apoio da Caixa Econômica Federal para poder publicar o Guia do Estatuto, tinha uma equipe mais no campo jurídico, coordenada pelo Nelson Saule, e a equipe urbanística, coordenada por mim. Nós escrevemos um Guia do Estatuto da Cidade, esse guia foi bem importante para trazer uma interpretação do conteúdo do Estatuto e fazer isso circular amplamente pelo Brasil. Depois, nós investimos num kit de Estatuto, num kit das cidades, para poder aprender a usar o instrumental do Estatuto, e isso foi um trabalho muito interessante, porque nós usamos uma pesquisa que tínhamos desenvolvido no âmbito de uma chamada de políticas públicas da FAPESP e nós fizemos uma pesquisa sobre formas de desenvolvimento urbano no estado de São Paulo e a relação disso com a regulação urbanística e, eu me lembro, nossos casos eram: Diadema, Limeira e uma cidade do litoral também, acho que era… Guarujá. A partir das conclusões que nós tivemos, de quais eram as questões, quais eram os conflitos, quais eram os temas nessas cidades, nós conseguimos montar um material de capacitação sobre o Estatuto que incluía um jogo, um vídeo, o Guia do Estatuto da Cidade (que a gente já havia feito), cartilhas. Enfim, foi um kit, um material muito rico. Nós conseguimos, também, com vários parceiros, através de várias parcerias, publicar e produzir mil, dois mil desses kits. para distribuir muito amplamente pelo Brasil, tanto para equipes de governos locais, como também para movimentos sociais, entidades profissionais… Foi um envolvimento muito intenso na ideia de disseminar esse conteúdo, mas, sobretudo, disseminar uma certa leitura deste conteúdo.
Pouco tempo depois, você foi secretária do Ministério das Cidades. Como foi a experiência de participar do planejamento e desenvolvimento das políticas previstas pela lei?
Uma das questões que eu mais me envolvi como Secretária de Programas Urbanos, foi promover a formulação de planos diretores participativos e, aí, de novo, aprendendo com o que a gente havia conseguido fazer no Pólis e conseguindo fechar, de novo, uma parceria com a Caixa, nós também montamos uma enorme estrutura de capacitação nacional assim, um programa mesmo, com kit para os planos diretores. E, aí, de novo, tentando disputar a ideia de um plano diretor como um pacto radicalmente participativo na cidade onde a disputa se explicitasse no espaço público e onde os historicamente excluídos pudessem, de fato, intervir no processo de debate.
Eu diria que essa experiência de elaborar os planos diretores. Ela, de um lado, mostra a potência de se pensar processos como esses, mas, ao mesmo tempo, os limites muito claros que esses processos têm. Limites que vêm do próprio fato de que o processo de elaboração dessas discussões sobre modelos de cidade já está absolutamente circunscrito e delimitado no interior de uma linguagem e de uma epistemologia do que que é a cidade, para o que ela serve e como ela tem que ser destinada, já, como eu havia dito, muito submetida à linguagem imobiliária e à linguagem dos produtos imobiliários, basicamente. Então, isso também revelou-se um limite muito claro. Revelou-se também o quanto o Estatuto da Cidade era basicamente uma discussão, digamos, metropolitana, das grandes cidades, e pouco dialogava com os pequenos municípios do interior e suas questões. Acho que isso também foi muito claro. Esbarrou também na dimensão metropolitana, toda a ideia do plano diretor municipal, é uma ideia de um município com carreira solo e isso não existe nas regiões metropolitanas. Enfim, acho que essa experiência mostrou potenciais, mas também mostrou limites muito grandes. Ao mesmo tempo, promoveu processos de debates pela primeira vez, em cidades que viveram processos de debate sobre seu futuro que nunca tinham vivido. Enfim, eu acho que também experiências múltiplas e interessantes no país.
Simplesmente, logo depois da campanha nacional dos planos diretores, vieram os investimentos mais pesados, inclusive para o urbano através do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e do Minha Casa, Minha Vida. Esses investimentos infelizmente não estabelecem nenhum tipo de diálogo com aquele esforço que havia sido feito de se pensar planos diretores e interviram nas cidades, digamos, passando completamente por cima dessa frágil e parca tentativa de planejamento territorial.
De 2001 para cá, quais são as mudanças visíveis? Você acha que as cidades de hoje são, de fato, mais democráticas do que as do passado?
É uma pergunta complexa, né. Eu acho que esse era o DNA do Pólis, apostar na ideia da participação, na radicalização da democracia e todo trabalho importante de capacitação, de formação, para poder participar de políticas públicas, acho que a gente viveu um ciclo de participação, mas esse ciclo encontrou um limite muito claro na natureza dos processos decisórios que acontecem sobre o destino das cidades no Brasil, muito condicionados por um diálogo entre os grandes setores empresariais que têm o interesse direto no urbano: as concessionárias de serviços públicos, os loteadores, os incorporadores imobiliários, os grandes empreiteiros de obras públicas, na sua relação com o Estado.
Pesquisadores do Instituto Pólis participarão da produção teatral Guerra – uma travessia virtual para difundir conceitos do direito à cidade e promover reflexões sobre como convivemos com os territórios urbanos. O espetáculo, encenado pela A Próxima Companhia, foi adaptado para o formato online e busca, com seu enredo, discutir as disputas de território, apagamento cultural e outros temas presentes na realidade de grandes metrópoles. A peça será transmitida gratuitamente pelo Youtube da Próxima Cia e estará em cartaz de 16 de junho a 31 de julho, todas as quartas, sextas e sábados, às 20h.
Inspirada na tragédia grega Ésquilo Sete Contra Tebas, na qual a cidade de Tebas está prestes a ser atacada em seus sete portais por uma guerra entre irmãos, a produção de Guerra levantou conflitos urbanos em regiões do centro São Paulo, mapeando sete territórios: Largo do Arouche, Cracolândia, Santa Efigênia, Favela do Moinho, Luz, Higienópolis e Minhocão. A adaptação virtual da peça conta com a condução do elenco de forma ao vivo e ainda com trechos audiovisuais que trazem índices documentais do processo e dos territórios antes e durante a pandemia.
Em parceria com o Instituto Pólis, o espetáculo terá uma dinâmica de interação mediada com o público. Questões instigadoras serão propostas ao longo da peça para trabalhar o Direito à Cidade como um conceito transversal às diferentes experiências vivenciadas no espaço urbano.. Ao fim da apresentação, as respostas do público enviadas pelo chat serão lidas e comentadas pelos pesquisadores. O intuito é provocar o público para que este reflita como interagimos com as cidades que habitamos.
Pelo Instituto, participarão da mediação Danielle Klintowitz, arquiteta urbanista e coordenadora geral do Pólis; Rodrigo Faria Iacovini, doutor em Planejamento Urbano e Regional pela USP e coordenador da Escola da Cidadania; Graciela Medina, formada em Políticas Públicas pela UFABC e assistente de projetos e Lara Cavalcante, arquiteta urbanista e parte da equipe de urbanismo.
A direção do espetáculo é de Edgar Castro e o elenco é formado por Caio Marinho, Caio Franzolin, Gabriel Küster, Paula Praia, Juliana Oliveira e as atrizes convidadas, Rebeka Teixeira e Lígia Campos.
SERVIÇO
O que: peça Guerra – uma travessia virtual Onde: página do Youtube da Próxima Companhia (Link) Quando: de 16 de junho a 31 de julho. Todas as quartas, sextas e sábados às 20h Preço: gratuito Duração: 70 minutos. Recomendado para maiores de 12 anos.
No dia 10 de julho, a Lei Federal 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, completará 20 anos. Presente em todas as dimensões da vida urbana, ela estabelece os princípios para a construção de uma cidade onde o interesse social e o bem estar coletivo estejam acima da mercantilização dos territórios.
Para celebrá-la, gostaríamos de contar um pouco de sua história através de pessoas que participaram ativamente de sua formulação e implementação. Portanto, veja, a seguir, a entrevista que fizemos com Patrícia de Menezes Cardoso, à época (em 2001), coordenadora de projetos no Núcleo de Direito à Cidade Sustentável do Pólis.
Qual foi a importância dos atores sociais no processo de aprovação do Estatuto da Cidade e como se deu a participação da equipe do Instituto Pólis?
Assim como a inclusão do capítulo de política urbana na Constituição Federal de 1988, a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 é uma conquista do movimento pela Reforma Urbana no Brasil, após 13 anos de luta e mobilização durante a tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional.
Junto com os movimentos de moradia, entidades profissionais e de servidores, ONGs, o Pólis teve papel decisivo tanto na luta pela aprovação como para a implementação do Estatuto da Cidade. O nascimento do Núcleo de Direito à Cidade do Instituto Pólis, coordenado por Nelson Saule, teve essa missão e atuou em diversas frentes no país para sua implementação.
A atuação do Pólis, teve destacada atuação jurídica para a implementação do Estatuto da Cidade em diversas instâncias federativas, incluindo a contribuição com a elaboração de resoluções Conselho Nacional das Cidades, enquanto representante da sociedade civil, à aprovação de normas em âmbito estadual e municipal em São Paulo de implementação de instrumentos novos como a concessão de uso especial para fins de moradia e usucapião coletivo, desde a formação e capacitação junto aos movimentos sociais e Prefeituras para a defesa do direito à moradia, à regularização fundiária e à cidade, à elaboração de materiais didáticos (guias, manuais, cartilhas, jogos) em apoio às Prefeituras para sua implementação, à consultorias de políticas públicas de gestão territorial como regularização fundiária e planejamento urbano em diversas regiões do país.
O que se esperava a partir da aprovação do Estatuto? Você diria que essas expectativas foram atendidas ao longo de sua implementação?
De modo geral se esperava uma maior efetividade da garantia da função social da propriedade e da cidade pela aplicação dos diversos instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade, especialmente no tocante ao enfrentamento do direito de propriedade sem função social, caso dos imóveis abandonados, vazios e ociosos. Ao mesmo tempo, o Estatuto da Cidade ampliou a pauta da Reforma Urbana para a defesa do Direito à Cidade. O marco legal inovador teve significativo impacto no fortalecimento do papel dos municípios no enfrentamento dos conflitos urbanos. Destaco como pontos fortes da implementação do Estatuto da Cidade, a exigência de participação e gestão democrática para a aprovação dos planos diretores e a criação de políticas de regularização fundiária de comunidades historicamente excluídas, ambos com repercussões e precedentes positivos na jurisprudência brasileira.
Quais foram os principais desafios e entraves enfrentados desde a sua criação e quais instrumentos urbanísticos geraram mais conflitos?
O direito de propriedade privada e estatal, em detrimento do uso efetivo da terra urbana enquanto territórios de vida por comunidades de baixa renda e povos e comunidades tradicionais, segue sendo o principal entrave. Por vezes o Estado prioriza a defesa da terra urbana enquanto mercadoria e não como função social.
As operações urbanas são exemplo de instrumento jurídico-urbanístico que merece uma revisão em sua normatização, considerando o papel que teve na produção de gentrificação e não na democratização da terra urbana.
As zonas especiais de interesse social, a concessão de uso especial para fins de moradia e o usucapião coletivo se fortaleceram como principais instrumentos de garantia da segurança da posse para as comunidades ameaçadas de remoção, em situação de conflito fundiário e pela permanência e melhoria de vida nos locais de ocupação urbana com função social.
20 anos depois de sua aprovação, quais são as mudanças notáveis? Você acha que as cidades de hoje são mais democráticas do que as do passado?
A principal mudança foi verificar o impacto da estruturação da política urbana no país, do nível federal ao local, na promoção de acesso à infraestrutura urbana em áreas de ocupação consolidada e à habitação, com a criação do Ministério da Cidade e políticas como o PAC e o Minha Casa Minha Vida. Nesse sentido a redução do déficit habitacional merece e destaque, assim como o papel do plano diretor em algumas cidade na regulação do uso do direito de propriedade.
Entretanto, pouco avançamos na democratização da cidade, na medida em que a lógica de produção de novas moradia reproduziu em maior parte a exclusão territorial dos moradores de baixa renda, os alocando em áreas ainda mais periféricas desprovidas de infraestrutura urbana, dissociando direito à moradia do direito à cidade.
O desemprego e a diminuição da renda em função da pandemia têm aumentado a insegurança habitacional, e o medo de despejos forçados e execuções hipotecárias faz parte da vida cotidiana em diversas cidades ao redor do mundo.
Com base em uma série de diálogos com redes e instituições da sociedade civil do Sul global, o webinário “Moradia de iniciativa comunitária: um caminho para futuros urbanos mais justos e e solidários” discutirá o papel de práticas lideradas pelas próprias comunidades na resolução da crise habitacional, e as condições institucionais necessárias para viabilizar e apoiar experiências de moradia de iniciativa comunitária. O evento será no dia 24 de junho, às 10 horas (horário de Brasília), com interpretação em português. Faça sua inscrição aqui.
Para atenuar o choque gerado pela pandemia, coletivos e redes da sociedade civil do mundo todo estão oferecendo apoio a grupos em situação de precariedade habitacional por meio de iniciativas de moradia de iniciativa comunitária. Ao criar redes que co-produzem e compartilham conhecimentos valiosos capazes de atravessar as fronteiras geográficas, esses grupos frequentemente produzem respostas mais eficazes para emergências habitacionais, construindo caminhos inclusivos e resilientes para o desenvolvimento urbano.
Neste evento da série IIED Debates, realizado em parceria com o Le Monde Diplomatique Brasil e a Escola da Cidadania do Instituto Pólis, conheceremos experiências e reflexões de seis redes e instituições da sociedade civil: Centro de Pesquisa Urbana de Serra Leoa (SLURC), Federação dos Pobres Urbanos e Rurais de Serra Leoa (FEDURP-SL), Coalizão Asiática para o Direito à Habitação (ACHR), Instituto Pólis, União dos Movimentos de Moradia (Brasil) e UrbaMonde. Os convidados compartilharão desafios que emergem de suas experiências em promover moradias de iniciativa comunitária.
Discutiremos como essas práticas apontam para caminhos possíveis que levem a um futuro urbano mais justo e solidário e como a crise habitacional intensificada pela COVID-19 lançou luz sobre esses caminhos. Os palestrantes apontarão, ainda, de que forma governos e instituições poderiam apoiar de forma mais efetiva experiências de moradia de iniciativa comunitária.
Fruto de muita luta e mobilização popular, a Lei Federal 10.257, mais conhecida como Estatuto da Cidade, está prestes a completar duas décadas. É nela que encontram-se as principais regras do desenvolvimento e planejamento urbano, para a construção de cidades mais justas, democráticas e sustentáveis, onde todes tenham acesso aos recursos, benefícios e oportunidades por elas oferecidas de maneira plena e igualitária.
Para dar início às celebrações, convidamos algumas pessoas que fizeram parte de sua criação, aprovação e implementação para compartilharem os momentos, desafios e expectativas desta trajetória. Essas pessoas fazem parte não apenas da história do Estatuto, mas também da do Pólis, que completa 34 anos em junho.
A seguir, vejam na íntegra a entrevista feita com o especialista em direito urbanístico, Nelson Saule, à época coordenador-geral do Pólis:
Eu tenho 5 perguntas. A primeira delas seria mais um resgate dos momentos que antecederam à aprovação do Estatuto da Cidade. Então, a gente gostaria que você contextualizasse um pouco esse momento, quais eram os movimentos que estavam acontecendo?
Pra fazer essa contextualização eu acho que é importante estabelecer claramente uma conexão de um processo que foi da elaboração da Constituição de 88, no final da década de 80, a Constituinte, onde o movimento na época da reforma urbana apresentou uma emenda popular pra inserir, uma agenda de reforma urbana na Constituição. Três elementos estavam nesse período como os elementos chaves, um era o reconhecimento dos direitos dos habitantes da cidade, naquele período a gente estava propondo como direitos urbanos; o segundo, um fortalecimento institucional, principalmente do Poder Público, mas em especial do município pra promover uma política do desenvolvimento urbano voltada para uma efetivação do cumprimento da função social da propriedade urbana, em especial e das cidades, e um terceiro sobre uma concepção de cidade democrática e inclusiva, com o princípio da justa democrática da cidade, e o reconhecimento da situação fática de como a maior parte da população das cidades vivem na sua relação com sua área onde vivem, o território, o bairro, que era a questão da posse social pra fins de moradia, principalmente pra população que vive nas favelas, nas ocupações, nos assentamentos informais de baixa renda consolidados, enfim, teve esses principais elementos. O Estatuto da Cidade é um desdobramento dessa proposta e também do próprio tratamento que houve na Constituição de 88, que alguns desses elementos estão presentes, como o fortalecimento do município pra promover essa política de desenvolvimento urbano, pelo instrumento do Plano Diretor, é obrigação dos municípios, passam a ter necessidade de fazer planejamento territorial pra todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, os princípios da função social da propriedade das cidades ser incorporados como princípios da política urbana, a situação fática reconhecida pelo usucapião, do direito da moradia para quem está na posse de áreas urbanas por pelo menos 5 anos, pra essa finalidade, e vários elementos foram incorporados; o que não teve uma incorporação imediata, de forma importante, foi a questão dos direitos urbanos, que envolve principalmente a concepção do direito à condições de vida urbana digna, incluindo ai os elementos da moradia, do transporte, infraestrutura, energia elétrica, iluminação pública, saúde, enfim, todos os elementos inerentes e fundamentais para uma condição digna de vida nas cidades. E para a promoção dessa política, foi uma decisão da Constituinte de que era necessário para a promoção dessa política, em especial pelo município, uma lei federal de desenvolvimento urbano. Isso então foi um processo que desencadeou a construção e a elaboração do Estatuto da Cidade; depois logo da Constituição foram se apresentando alguns Projetos de Lei pra instituir essa lei federal, o que é importante ressaltar é que não foi nenhuma iniciativa de governo da época; naquele período era o governo Collor, quando foi estabelecido já o período para a elaboração dessa lei federal, depois o governo Fernando Henrique Cardoso, mas nenhum governo teve a iniciativa de apresentar um Projeto de Lei; na verdade foram parlamentares que passaram a ter essa iniciativa, e ai como marco referencial foi aprovado, já no ano de 90, um projeto de lei de um senador na época, Pompeu de Sousa, que ai justamente esse projeto já batizava com esse nome Estatuto da Cidade. Então, na década de 90, esse movimento da reforma urbana teve uma… que é formado por organizações de movimentos populares que se formam até hoje, ele continua ativo e atuante, o Instituto Pólis continua participando ativo do Fórum Reforma Urbana e desse movimento, então congrega também Organizações Não Governamentais, na época, além do Pólis, importante como organizações tinha a Fases, uma organização histórica que atuava em várias cidades brasileiras, com destaque principalmente no Rio de Janeiro e o próprio Ibase, fazia parte desse Fórum, associações profissionais de arquitetos, engenheiros, geógrafos e organizações de advocacia popular, no campo do direito, também grupos acadêmicos participavam da articulação, e também grupos de acadêmicos, que hoje até são de certa maneira representados pelo Observatório das Metrópoles, naquela época eram grupos mais de ativistas acadêmicos que participavam dessa articulação, desse movimento. Então esses atores buscaram durante toda a década de 90, eu não vou entrar em detalhes do processo na Câmara dos Deputados, mas o que é importante dizer é que sempre teve muita resistência de ser aprovado essa legislação, porque ele estaria gerando uma auto aplicabilidade do tratamento da política urbana na constituição e principalmente fortalecendo ai os municípios pra promover essa política pra cumprimento, principalmente da propriedade urbana ter a sua função social, então até teve deputados que eram ligados a Sebic, setor da construção civil, tinham seus representantes e ficou praticamente 4 anos segurando o processo pra emitir um parecer como relator, então teve muitas… um processo político muito tenso, intenso, durante mais de 10 anos para a aprovação do Estatuto. Esses foram atores favoráveis e atores contra e a condição favorável para a provação do Estatuto foi que conseguimos, na época, articular uma bancada de parlamentares de diferentes partidos, mais no campo progressista, principalmente, que principalmente no final dos anos 90 começaram uma articulação junto com o Movimento Reforma Urbana e até começaram pra ter uma mobilização mais forte na aprovação do Estatuto, a realizar conferências da cidade no Congresso Nacional, que foi uma articulação muito importante de mobilização da sociedade civil, tendo como um foco principalmente a aprovação do Estatuto da Cidade naquele período.
Eu queria resgatar o que você disse logo no começo da sua fala, que foi sobre usucapião, a gente sabe que no processo de formulação do Estatuto da Cidade alguns instrumentos geraram muito conflito, um deles foi o usucapião e também a outorga onerosa, que foi visto mais como mais um imposto ou algo do tipo. Eu queria que você comentasse um pouco mais sobre esses conflitos que se acirraram durante esse período.
Na verdade o usucapião não teve tanto conflito, porque ele já estava na constituição e era mais a questão dele ser incorporado na perspectiva dele ser reivindicado e declarado de forma coletiva, o que teve mais polêmica, na verdade foi porque na constituição, essa polêmica vem desde a verdade do processo da constituinte, é que o usucapião foi proibido pras áreas públicas. Aqui em São Paulo, por exemplo, como vocês sabem, a maioria das favelas estão situadas em áreas públicas, são mais de mil favelas, pelo menos naquela época já tinha um mapeamento, sem ser das favelas, então mais de mil favelas estavam todas situadas em áreas públicas, e a maioria municipais, isso também é uma realidade de várias outras cidades brasileiras, então como foi proibido o usucapião pra reconhecer direito de posse social pra moradia da população dessas favelas se consolidasse, como é o caso de Heliópolis, já tem mais de 50 anos, como um exemplo clássico, essa era uma questão fundamental de como ficaria a situação dessa população toda, de reconhecer uma proteção do seu direito à moradia. Esse acho que foi realmente um ponto chave na discussão do Estatuto, de como seria reconhecido esse direito; no final foi aprovado o instituto da concessão de uso pra fins de moradia no Estatuto da Cidade, que reconhecia, mas nos mesmos termos do usucapião, esse direito, nos mesmos requisitos estabelecido; mas foi sempre polêmico, se colocava que isto estaria sendo inconstitucional, porque estaria legislando sobre patrimônio e bens públicos de outros entes federativos, por ser uma lei federal, então estaria ferindo a questão da competência dos estados federados e municípios, e também ferindo o meio ambiente, porque essas áreas públicas são áreas que são consideradas formalmente como áreas verdes, praças principalmente, são a maioria, e estaria então lesando todo esse tratamento da proteção dessas áreas públicas; mas se logrou no final, até com pareceres que a gente conseguiu articular na comissão de justiça, a condicionalidade dessa proposta, ela foi aprovada, só que no final, quando foi pra sanção, na época o governo Fernando Henrique, o governo vetou esse instituto, e depois teve uma negociação com o governo, ai direto, porque antes, como eu falei, o Estatuto não tinha uma relação direta com o governo, era uma lei que tinha sido construída basicamente pela Câmara, pelo parlamento Senado – Câmara, e só no final mesmo que o governo teve que se manifestar pra poder sancionar a lei, e ai foi vetado tanto esse aspecto com esses argumentos de que ia incentivar novas ocupações nas áreas públicas, reconhecendo esse direito; no final, não vou entrar em detalhes, foi feita uma Medida Provisória, logo em seguida a aprovação do Estatuto, que é a 2220/2001, que então instituiu a concessão de uso especial pra moradia, que é a Coem, só que com uma limitação que teve na época, enfim, mas que foi fruto da negociação com o governo de que só teria esse direito as pessoas, enfim, as comunidades que tivessem atendido aqueles requisitos da posse até o ano da edição da lei; quer dizer, até 2001 quem tinha a posse, como o caso do pessoal da favela do Heliópolis, por exemplo, poderia reivindicar esse direito, agora, as novas ocupações que passariam a ocorrer a partir de 2001, não seriam reconhecidos; e também trazia problemas, por exemplo, se você tinha 4 anos até 2001, ai mais um ano você já completaria os 5 anos, ai essa população que deveria ter o direito, não teve, então esse foi um ponto crítico, mas no final foi avaliado que era melhor ter a Coem, que já ia incorporar a maioria das favelas situadas em áreas públicas, do que não incorporar, então foi uma conquista, depois foi bem importante a conquista da Coem dentro do Estatuto da Cidade. Eu diria que esse foi um ponto crítico; outro ponto crítico que se estabeleceu foi a questão da gestão democrática, tinha sido proposto também um sistema nacional de desenvolvimento urbano, com essa perspectiva da gestão democrática, e esse capítulo não foi incluído no Estatuto, e ai nessa negociação que teve, nessa Medida Provisória, se instituiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, que praticamente foi embrião, com relação ao Conselho das Cidades, que depois foi criado no primeiro governo Lula, quando foi criado o Ministério das Cidades, logo em seguida foi criado o Conselho das Cidades, mas também foi fruto desse momento político com relação à questão do estabelecimento de um sistema, chamado democrático, pra política urbana. A questão metropolitana também foi bem polêmica de se tratar no Estatuto da Cidade, no final não se tratou e ai foi um problema, eu acho que esse é um dos problemas críticos também de ter deixado praticamente sem nenhum tratamento a questão das regiões metropolitanas, isso gerou um problema que ai vários estados começaram a criar vários tipos de regiões, áreas metropolitanas, sem nenhum requisito, esse é um problema que se tem até hoje, dessa problemática da questão metropolitana. É claro que o ponto mais crítico, na verdade foi a regulamentação dos instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade, esse que era o ponto de negociação chave de como seriam tornados autoaplicáveis esses instrumentos, e principalmente no sentido de fortalecer, principalmente o município, pra aplicar os instrumentos, então desde os conceitos de subutilização, o que seria subutilização, estava em disputa, ai principalmente tinha um lobby forte das igrejas de não considerar o outro instrumento importante que também foi colocado, que era o relatório de estudos impacto e vizinhança, que não fosse atingido as igrejas como atividade de incômodo, então esses pontos foram os mais críticos. Eu diria que esses outros instrumentos vinculados ao direito de construir, na verdade outorga onerosa foi até uma proposta que veio, que era também defendida pelo próprio movimento de reforma urbana até como base na perspectiva justamente, o ponto tenso era de você tornar o direito de construir como um direito público, separando do direito de propriedade, esse foi um debate bem intenso também, principalmente naquela perspectiva de que o direito de construir fosse considerado como um direito para apenas um coeficiente igual a 1, quer dizer, então todas as pessoas poderiam construir uma vez a metragem do seu terreno, e tudo o que fosse acima desse direito igualitário passaria a ser praticamente como um direito, vamos dizer assim, ou uma atribuição do poder público, então esse ponto foi bem polêmico, principalmente essa questão de uma separação ou de estabelecer como um direito público, o direito de construir. Esse eu destacaria também como uma discussão bem importante que foi na época, e ai no final a outorga onerosa foi reconhecida, tem um coeficiente único estabelecido, mas ai se jogou essa arena política de decidir como seria esse coeficiente, se seria único, se seria 1, para os municípios, na elaboração dos processos do Plano Diretor; e, claro, boa parte da aplicação desses instrumentos foi claramente condicionados a edição do Plano Diretor, que também teve um tratamento importante no Estatuto, principalmente com relação ao que deveria ser o conteúdo mínimo, um processo de participação popular, enfim, a ampliação dos municípios que deveriam ter a obrigatoriedade do Plano Diretor, vários elementos que o Estatuto trouxe também de forma importante.
Pra você, além de toda esses conflitos e de toda essa disputa de narrativas, quais eram as expectativas que rodeavam aquele momento, o que era esperado de fato do Estatuto da Cidade e você acha que hoje, analisando todo o decorrer de sua implementação, ele cumpriu com o esperado? Como foi?
Então, acho que na época tinha uma… vamos dizer assim, uma questão muito importante que foi inserido no Estatuto da Cidade, que era a concepção de direitos, então esse foi um elemento fundamental do reconhecimento do direito à cidade, dentro do estatuto, o movimento da reforma urbana, ele foi se desenvolvendo e foi evoluindo na sua agenda, principalmente nessa década de 90, com uma perspectiva de defender o direito à cidade, que como eu falei, na Constituinte a visão era um pouco diferente, eram direitos urbanos numa perspectiva mais dos direitos individuais dos habitantes da cidade, e foi evoluindo, foi progredindo na construção da visão do direito à cidade, na própria agenda do movimento reforma urbana para a perspectiva de um direito coletivo, como um direito humano coletivo, muito similar ao direito ao meio ambiente, mas com a perspectiva de ser um direito dos habitantes da cidade, fazendo uma conexão com o elemento, condições de vida digna na cidade, funções sociais da cidade e a gestão democrática da cidade, esses 3 pilares do direito à cidade; foi bem importante, foi bem celebrado e praticamente a partir dessa aprovação do Brasil, se virou uma referência o Estatuto da Cidade pra toda a perspectiva de internacionalização do direito à cidade como um direito humano; foi bem praticamente no mesmo período em que começou os fóruns mundiais, aqui no Brasil, em Porto Alegre, e ali nesse espaço do fórum se articulou também toda essa temática sobre as questões urbanas e o direito à cidade, pra construção da carta mundial do direito à cidade, que teve uma base de referencial importante justamente daqui da experiência do Brasil, que virou um marco referencial. Eu lembro que até o Instituto Pólis, vale a pena se resgatar e levantar na biblioteca, tem umas publicações do Estatuto da Cidade em inglês, que foi publicado logo em seguida, juntamente com o Uni Habitat, junto com o Instituto Pólis, justamente por causa desse reconhecimento internacional. O outro, claro, era a questão se fortalecer a perspectiva da democracia e da participação política nas cidades, com a questão da gestão democrática eu acho que esse foi um ponto fundamental e que gerou, logo depois do Estatuto, quando teve a obrigatoriedade de se elaborar os Planos Diretores, pelo Estatuto, que ele tinha dado o prazo de 5 anos na época, de construção e articulação de processos políticos nas cidades, pra ter planos diretores em consonância com essa agenda de reforma urbana, do direito à cidade, do Estatuto e que foi o que ocorreu, ai já até com uma condição de ter o Ministério das Cidades, que incorporou essa agenda e até fez uma campanha, na época muito importante, que era do Plano Diretor Participativo, então isso só foi possível porque estava inserido dentro do Estatuto, e é claro que ai tem que se fazer o balanço, a avaliação de como foi o resultado desse processo político, mas numa perspectiva de disseminação da visão, da concepção que estava no Estatuto da Cidade, eu particularmente considero positivo esse período da década passada, quando foi esse processo da elaboração desses primeiros planos diretores, com base já no Estatuto da Cidade. Houve um terceiro, que o ponto crítico foi a questão fundiária que tinha muita expectativa, já que tinha sido adotado o usucapião, a própria Coem, a diretriz da regularização fundiária e da urbanização dos assentamentos de baixa renda, acho que havia uma perspectiva de ter tido um… vamos dizer assim, bem ampla a aplicação e a adoção dessa política nas cidades brasileiras de forma, vamos dizer assim, mais massiva, tentando ser um pouco mais claro, e esse acho que é um ponto crítico que precisa ser avaliado porque não se chegou a um processo de uma política estratégica urbana e de habitação que incorporasse claramente esses dois elementos, a urbanização e a regularização fundiária; é claro que tem muitas experiências, se alastrou bastante nos planos diretores com a inclusão de várias áreas como zonas de interesse especial social, em várias cidades como aqui em São Paulo mesmo, enfim, praticamente as grandes cidades teve lutas para essa questão da regularização fundiária, mas enquanto uma perspectiva de uma política consolidada, nós não temos essa questão, mesmo para a aplicação dos institutos, então um a programa que apoiasse as comunidades pra entrar com usucapião, uma ação mais articulada até do próprio governo com o setor do judiciário pra fins da sensibilização e tratamento dessa temática fundiária, enfim, teve iniciativas, mas ela não gerou o impacto que deveria, na minha opinião. E o terceiro ponto que me parece importante é que teve vários instrumentos que se tinha a perspectiva de serem utilizados pra também promover ações de maior igualdade social e territorial, reversão dos investimentos e considerando a aplicação dos instrumentos do Estatuto, e isso praticamente não ocorreu, com raras exceções, São Paulo é uma exceção, que utilizou a outorga onerosa pra fazer vários projetos de urbanização, regulação fundiária na cidade, mas considerando a realidade do Brasil, essa perspectiva desses instrumentos serem voltados pra esses objetivos mais sociais, esse acho que é um ponto crítico da aplicação do Estatuto.
Você comentou sobre as publicações internacionais e todo o reconhecimento do Estatuto. Por último, eu gostaria que você falasse um pouquinho mais sobre o papel desses atores sociais e também do Instituto Pólis, tanto na criação, que você já comentou, quanto na consolidação do Estatuto da Cidade.
Acho que com relação a atuação do Fórum e do movimento reforma urbana, sem dúvida teve um papel relevante nesse papel todo histórico da formulação do Estatuto, mas também na própria perspectiva da sua implementação, principalmente quando se estabeleceu o Conselho das Cidades, que era um conselho voltado pra atuar na construção dessas politicas habitacionais, vinculado ao Ministério das Cidades, e teve uma articulação muito grande desse movimento pra construção de processos mais participativos de mobilização, então as conferências das cidades que foram realizadas, pra construção dessas politicas, eu acho que foi fundamental a participação de todas as organizações do Fórum da Reforma Urbana, com certeza, e na construção da formulação dessas politicas, com essa visão da agenda da reforma ter sido incorporada, ai eu destaco, por exemplo, em 2010 nós tivemos um fórum da reforma urbana mundial aqui no Brasil, que é o fórum organizado pela ONU Habitat, de 2 em 2 anos, pra estabelecer um diálogo com todos os setores, segmentos que atuam nessa questão dos assentamentos humanos, cidades, agenda urbana, e esse Fórum Urbano Mundial teve justamente como o tema principal o direito à cidade, justamente por essa articulação que foi feita destes movimentos e das organizações que estavam no fórum, o Instituto Pólis já tinha uma articulação internacional enquanto redes e outros movimentos internacionais, e a gente conseguiu articular institucionalmente a temática do direito à cidade, que vinha dessa mobilização toda dos fóruns sociais mundiais, com a Carta Mundial de Direito à Cidade […] de ter construído um fórum institucional, com a temática do direito à cidade, que criou a primeira condição de ter realmente um destaque, uma relevância da discussão do direito à cidade numa esfera mais internacional da própria Nações Unidas, e o Instituto Pólis contribui pra principalmente… tem contribuído desde a época da Constituinte na construção, na formulação dessa visão, dessa concepção do direito à cidade, participando ativamente na construção da Carta Mundial de Direito à Cidade, participando depois ativamente na construção dessas politicas nacionais junto ao Conselho da Cidade, e seguindo, porque hoje a gente, dentro dessa perspectiva, até do próprio balanço dos 20 anos, como nós estamos já há 6 anos atuando na coordenação da plataforma global pelo direito à cidade, nós conseguimos levar um pouco essa experiência desse trabalho aqui do Brasil, de advocacy, de mobilização, pra conferência que houve em 2016, o Habitat 3, que constituiu a nova agenda urbana e nós, o Pólis, atuamos dentro dessa plataforma com muita… com bastante capacidade, condição de ter construído dentro dessa rede internacional, uma condição política de ter inserido na nova agenda urbana a visão de direito à cidade, que ela está inserida; e agora nesse balanço dos 20 anos já está desenhado, como também está se fazendo um balanço da nova agenda urbana, nós nesse ano, provavelmente no segundo semestre, vamos fazer alguns diálogos, alguns debates públicos, principalmente aqui na América Latina e Caribe, desse balanço, tanto da nova agenda urbana e dos 20 anos do Estatuto da Cidade, no sentido de estar fazendo essa avaliação, esse balanço, uma dimensão mais articulada, pelo menos aqui na América Latina e Caribe, e vamos também construir essa perspectiva mais no campo internacional também, dentro da plataforma global.
Você gostaria de acrescentar alguma coisa?
A questão do balanço do Estatuto da Cidade, está tendo muitos eventos, acabei de participar de um agora de manhã, o Seminário Internacional de Direitos Humanos, então acho realmente que dentro desse balanço é importante a gente pensar que questões são chaves hoje, que na época quando se discutiu o Estatuto, não estavam tão presentes, assim, quanto às prioridades. Então pensando nesse balanço hoje do Estatuto da Cidade tem alguns temas que a gente já tem trabalhado no Instituto Pólis, que me parece que precisam ser destacados; acho que a própria compreensão e consolidação do que é a visão do próprio direito à cidade, acho que é fundamental nesse momento, considerando tudo o que a gente está vivendo, todos os problemas que a gente está tendo aqui no Brasil nesses últimos anos, com a pandemia, a questão também da dimensão do meio ambiente, toda essa problemática das mudanças climáticas, me parece que é uma questão chave hoje pra gente aprofundar nesse balanço; a questão da discriminação, é uma questão que agora está emergindo em vários estudos, debates, principalmente a questão racial, a questão da cor, essa temática não foi um tema que entrou na época da discussão do Estatuto da Cidade, mas hoje a questão da cidade sem nenhum tipo de discriminação é fundamental; a dimensão da cidade e diversidade cultural, inserindo também a questão da dimensão cultural e os espaços públicos também; claro, questão de gênero, mas eu acho que nesse aspecto está mais avançado, até nas próprias agendas globais isso é bem colocado, a própria nova agenda urbana, mas eu acho que a questão racial realmente é uma questão chave hoje pra pensar como aplicar o Estatuto da Cidade na nossa cidade. E também em razão da pandemia, fortalecer mais o papel significado hoje da atuação do Poder Público, que nos últimos períodos estava sendo muito questionado essa questão da atuação do Poder Público principalmente no campo econômico, aí entrava claramente a questão da propriedade, propriedade da terra, propriedade fundiária, então em razão da pandemia tem um novo paradigma de fortalecimento e de atuação, realmente da intervenção do Estado pras questões sociais, e me parece que a gente tem que aprofundar mais o que nós queremos enquanto papel do Estado e da intervenção nas cidades, das politicas nas cidades que foi se enfraquecendo, a meu ver, na visão do próprio papel e responsabilidade do Estado nas questões sociais, me parece que esse é um elemento chave pra discutir hoje o que deve ser uma política urbana de desenvolvimento territorial e de construção de uma cidade, na concepção da justiça social, do direito à cidade e dos direitos humanos, e da democracia. Seria só isso a acrescentar.
Novo estudo realizado pelo Instituto Pólis mostra que grande parte das vítimas fatais de Covid-19 em São Paulo, entre março de 2020 a março de 2021, é de profissionais que não concluíram a educação básica, e que não interromperam as atividades. De acordo com os números da pesquisa, pedreiros, empregadas domésticas e motoristas de carros de aplicativo estão entre as ocupações mais afetadas pela doença.
O estudo utilizou informações sobre os óbitos por Covid-19 na cidade de São Paulo entre março de 2020 e março de 2021. Os dados foram coletados do SIM PRO-AIM (Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade), coordenado pela Secretaria de Saúde do Município de São Paulo. A partir dessas informações, o Pólis identificou 737 ocupações das vítimas, classificadas de acordo com o código CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), e as organizou em categorias de atividades, agrupadas segundo o setor econômico, tipo de atuação, nível de exposição do trabalhador e possibilidade de trabalho remoto.
A fim de detectar características em comum das pessoas envolvidas naquelas atividades mais atingidas, também foram analisadas informações sobre a escolaridade, faixa etária, local de residência, raça e sexo das vítimas. Durante o período analisado, foram registradas 30.796 mortes por Covid-19 em São Paulo. Destes, 23.628 (76,7%) foram de pessoas que não completaram o ciclo de educação básica, ou seja, tinham 11 anos ou menos de estudo. Considerando a escolaridade das vítimas como uma proxy sobre seu padrão de renda, os dados confirmam que a mortalidade de Covid-19 é maior entre trabalhadores e trabalhadoras mais pobres.
É preciso conhecer a fome para descrevê-la, dizia Carolina Maria de Jesus. Para ela, a fome era amarela e empalidecia tudo ao redor: o céu, as árvores, as aves, todas as cores se desbotavam diante de seus olhos. Nas palavras da poetisa, a sensação de ter somente ar no estômago era como um soco que lhe atingia em cheio. Carolina escreveu o diário “Quarto de Despejo”, que posteriormente se tornaria um livro, entre 1955 e 1960, mas suas palavras e sentimentos ainda reverberam na atualidade. Hoje, a realidade vivida por ela, décadas atrás, é compartilhada por ao menos 19 milhões de brasileiros que sobrevivem à fome, além de outros 116 milhões que encontram-se em situação de insegurança alimentar, ou seja, com o acesso a uma alimentação devidamente adequada reduzido.
Em virtude disso, e dos poucos esforços do governo para erradicar as desigualdades descortinadas pela pandemia. Muitas entidades e coletivos se reuniram para criar campanhas solidárias, na intenção de ajudar famílias em situação de vulnerabilidade social a atravessar este momento de pandemia. A seguir, separamos algumas destas campanhas abaixo:
Sem casa e com fome Campanha feita pela União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), para distribuição de cestas básicas às famílias vulneráveis em ocupações urbanas, favelas, cortiços e mutirões: https://bit.ly/3tWRfc9
Consciência Negra é ajudar a quebrada a se manter viva Campanha de apoio permanente para famílias negras e periféricas, feita pela Uneafro para distribuição de cestas básicas e itens de higiene em 44 territórios do país: https://bit.ly/3bCzdp4
Crédito Comunitário Contra a fome Campanha organizada pela União por Moradia Popular da Bahia (UMP-BA), para criação de uma moeda comunitária destinada às famílias ocupantes da obra do Condomínio das Mangueiras, em Salvador: https://bit.ly/3bExJLf
Bixiga Sem fome Campanha para distribuição de cestas básicas e marmitas pela região do Bixiga e proximidades. As doações podem ser feitas via PIX, PicPay ou nos pontos de arrecadação. Veja mais informações abaixo:
Se tem gente com fome, dá de comer! Campanha nacional de arrecadação de fundos para o enfrentamento a fome, a miséria e a violência durante a pandemia: https://www.temgentecomfome.com.br/
Cesta Básica para os Camelôs Campanha feita pelo Movimento Unido dos Camelôs para distribuição de cestas básicas e itens de higiene para camelôs do Rio de Janeiro: https://bit.ly/3f20tzC
A população do Bom Retiro precisa de você! Feita pela Rede Cuide do Bom Retiro, os valores arrecadados serão destinados às iniciativas que beneficiam pessoas em situação de vulnerabilidade no território do Bom Retiro e região: https://benfeitoria.com/bomretiro
Para conferir mais iniciativas e campanhas, confira o mapa interativo criado pelo Fundo solidário Rede de Apoio Humanitário ao combate da Covid-19. Nele, é possível encontrar outros lugares, coletivos e organizações da cidade de São Paulo que estão arrecadando valores para distribuição de cestas básicas, clique aqui.
Na última segunda-feira (17/05), o Largo da Memória – local histórico de resistência em São Paulo e um dos principais monumentos da cidade – foi cenário de um projetaço organizado por 37 coletivos que compõem a rede Juventudes nas Cidades, com o apoio da Ação Educativa e do Instituto Pólis, que juntos coordenam as atividades do projeto na capital paulista.
Enquanto dezenas de trabalhadores voltavam para a casa, a empena localizada em cima do metrô Anhangabaú e próxima ao Terminal Bandeira foi estampada com pedidos para o uso de máscaras e vacinas e estatísticas que mostram quem são as pessoas mais afetadas pela pandemia – pretos e pobres. Foram mais de duas horas de projeção, feita em parceria com o Coletivo Coletores, organização que pensa a cidade como meio e suporte para suas ações, a partir de arte interativa e digital.
Em parceria com o coletivo Onilé, também foram distribuídos projetores de mão para integrantes do projeto, e que possibilitaram a projeção dos materiais em territórios periféricos da cidade, como São Mateus, Grajaú, Carrão, Sapopemba, Rio Pequeno, Butantã e Vila Tiradentes.
As artes estão disponíveis para download aqui, e podem ser utilizadas nas redes sociais, projetaços, cartazes… Só não esqueça de registrar, e usar a #PandemiadaPontepraCá.
Na subida do morro é diferente
Desde o início da pandemia, jovens das periferias da capital paulista têm relatado a carência de políticas públicas no combate à Covid-19 em seus territórios. A falta de recursos, protocolos de saúde ineficazes no contexto da periferia e as dificuldades de cuidar da saúde mental são os que causam mais preocupação.
É possível ver que a pandemia não só piorou os problemas já conhecidos nos territórios periféricos, como os tornou mais complexos e trouxe novos obstáculos. Falta de saneamento e água, acesso restrito a equipamentos de proteção, como máscaras e álcool em gel, e interrupção de serviços sociais são apenas a ponta do iceberg.
“Aqui em casa, às sete horas da noite cortam a água. Isso já dificulta a higiene pessoal, tão importante agora na pandemia”, diz Maya Guedes, integrante dos coletivos Transferência e Entre Vielas, ambos localizados no Grajaú, na Zona Sul da cidade. “E nem sempre produtos para a limpeza são opção. Às vezes também não temos condição de comprar sabonete, álcool em gel”, acrescenta.
Em relação ao uso de máscaras, preço e desinformação atrapalham o esforço de proteger a população. “A gente tem enfrentado muitas fake news com relação às informações da pandemia. Já vi pessoas dizendo que não confiam na vacina.”, exemplifica Thaís Oliversi, do Coletivo Periferia Preta, atuante no distrito de Sapopemba, Zona Leste de São Paulo.
Para Mayana Vieira, do coletivo Slam do Grajaú, na região Sul, nem todos os protocolos de saúde funcionam para a população da periferia, principalmente trabalhadores. “O distanciamento social é quase impraticável. Quem continua saindo para trabalhar tem que enfrentar trens e ônibus lotados, no Terminal Grajaú em horário de pico, por exemplo, é impossível manter um distanciamento de 2 centímetros por pessoa, quiçá 2 metros”, afirma.
Essas e outras discussões foram compartilhadas na live “Na Subida do Morro é Diferente: Realidades das Juventudes em Pandemia”, com a presença da covereadora Carolina Iara, e integrantes de coletives das quatro capitais em que o Juventudes nas Cidades atua: Jarda Araújo (PE), Rayssa Pereyra (RJ), Ruan Guajá (DF) e Thais Oliversi (SP). A mediação foi de Jahpam (SP). O papo teve como tema a realidade das juventudes durante a pandemia do coronavírus, e aconteceu simultaneamente ao projetaço. Assista na íntegra no link abaixo:
Acesso à internet
O desafio de adequar as atividades para o online é outra das questões que dificultam a manutenção de protocolos nesses territórios. “Acesso à internet ainda é algo limitado em algumas periferias. Então como mantemos crianças estudando? Como trabalhamos de casa? Como consumimos cultura e divulgamos nossos trabalhos sendo que o online é limitante e o trabalho de rua se tornou um risco?”, questiona Pamella de Mendonça, conhecida como Jahpam, do coletivo Reggae Action, da Zona Leste de São Paulo.
Continuar as ações afirmativas em seus territórios não é um desafio apenas do coletivo da Pamella. De acordo com Raquel Luanda, que integra a equipe de coordenação do programa Juventude nas Cidades na capital paulista, o trabalho de coletivos que atuam na periferia é muito pautado na abordagem de rua para divulgar suas produções e ativismo. Uma vez que a rua não é mais uma opção, muitos trabalhos foram quase paralisados.
“Desde o começo da pandemia o maior desafio é pensar em como dar conta de levar transformações e reflexão para os jovens e coletivos que trabalhamos que, muitas vezes, não têm acesso à internet para ver nossa agenda, nossas produções. Tanto sobre questões culturais, como também informações de saúde, serviços e ajuda humanitária. As políticas públicas atuais não consideram essas realidades e praticamente abandonam uma parte da população”, diz Raquel, que lembra que muitos coletivos migraram para trabalhos humanitários ao invés de dar continuidade às suas ações.
A partir deste panorama, o programa Juventude nas Cidades disponibilizou chips com 20GB de internet para os jovens que participam do projeto. Além de assegurar a presença deles nas ações, ajudou a despertar a reflexão sobre direitos digitais.
Saúde mental
Todos esses obstáculos também serviram para impactar na saúde da população das periferias. Com o controle da pandemia prejudicado, a taxa de infecções nesses territórios só cresce. Isso, segundo os jovens ouvidos, impediu que muitas pessoas buscassem atendimento médico por medo da Covid-19. A saúde mental também foi afetada.
“Como eu vou ter concentração para escrever um texto para um edital se a vida está desse jeito? Se eu não estou conseguindo pagar o meu aluguel? Às vezes, eu tenho o mínimo, mas quem está andando comigo não.”, relata Esther Rodrigues De Oliveira, do coletivo Mulekalê.
O Juventude nas Cidades, em parceria com o Instituto AMMA Psique e Negritude – organização não governamental de enfrentamento ao racismo, formado por um grupo de psicólogas – ofereceu tratamento no qual os jovens puderam refletir sobre os primeiros impactos da pandemia em suas vidas.
Juventude nas Cidades: ações
Entre os dias 14 e 15 de maio, a Oxfam Brasil, em parceria com as instituições que coordenam o programa Juventudes na Cidade no Brasil, promoveu o 1º Festival Juventudes nas Cidades. O evento foi inteiramente online, e contou com 24 atrações de arte e cultura organizadas por coletivos de jovens de São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Distrito Federal.
Mesmo com os obstáculos impostos pela pandemia, os jovens participantes do programa Juventude nas Cidades também desenvolveram uma série de ações voltadas para formação e com foco nos coletivos culturais, no último ano. São elas:
Cartilha para inscrição de projetos em editais públicos – O documento foi criado a partir de oficina colaborativa que incentivou os jovens a pensarem na sustentabilidade dos coletivos culturais periféricos. Acesse aqui.
Ações integradas sobre a cultura de segurança para defensores de direitos humanos – A atividade envolveu encontros e um episódio do podcast Rádio Juv, sobre vigilância, privacidade e segurança. Também foi produzido um painel que ilustra as motivações dos coletivos e o que fazer para garantir a proteção física e digital dos ativistas.
Carta manifesto – O documento foi destinado a candidatos(as) a vereadores(as) nas eleições municipais de São Paulo de 2020. Elaborado a partir de encontros quinzenais que incentivaram troca de saberes e debates de pautas prioritárias aos jovens, requisitou direitos à empregabilidade, renda e suas intersecções nas dimensões de raça, orientação e identidade de gênero, dentre outras. O manifesto completo está disponível aqui.
O Juventude nas Cidades é uma iniciativa nacional das organizações Oxfam Brasil, Ação Educativa, ONG Fase, IBASE, INESC e Criola.