Ao longo de 2020 e 2021, dados sobre hospitalizações, óbitos e vacinação foram reunidos em análises que propuseram fazer leituras urbanas sobre a pandemia na cidade. Além de mapear seus impactos, notadamente desiguais no território e nos diferentes grupos populacionais, esses estudos também buscaram demonstrar a importância de certas estratégias para o adequado monitoramento epidemiológico, controle do contágio e preservação da vida, primando pela redução das iniquidades sociais e pela afirmação de direitos.
Este novo estudo faz um balanço sobre os dados da mortalidade por Covid-19 no Município de São Paulo (MSP) entre 2020 e 2021 e tem como objetivo sintetizar leituras acerca da pandemia na capital paulista, como forma de reforçar algumas recomendações centrais para o enfrentamento da emergência sanitária, que acelerou seu crescimento na nova onda de contágios e mortes.
O Conselho Estadual de Saúde (CES) do Estado de São Paulo aprovou por unanimidade um conjunto de recomendações ao Governo do Estado no dia 30/08/21, considerando o atual quadro da pandemia de Covid-19 e os riscos da variante Delta. A flexibilização das medidas de restrição, bem como a retomada das atividades econômicas de forma presencial são os principais pontos de preocupação.
A “equidade na distribuição de doses” consta como uma das recomendações feitas, assim como a adoção de ações preventivas para o controle da Covid-19 em unidades escolares. Estes foram temas de estudos do Instituto Pólis, que apontou a importância de critérios territoriais na condução da campanha de imunização contra a Covid-19. Confira o estudo publicado em julho. Por conta da reabertura das escolas para o ensino presencial, o Pólis lançou em agosto um estudo sobre a “mortalidade na educação” por causa do coronavírus.
O documento do CES também aponta a necessidade de recompor o Comitê de Enfrentamento à Covid-19 “incluindo a participação de representante de trabalhadores, usuários da saúde e epidemiologistas especialistas em doenças transmissíveis”. Para conferir a íntegra do documento com as 15 recomendações, clique aqui.
Com o avanço gradual das etapas de imunização, grupos cada vez mais jovens e mais numerosos se habilitam para a vacinação contra a Covid-19. Mas o fato de a imunização prioritária das faixas etárias mais idosas ter sido minimamente atendida não diminui a necessidade de termos uma priorização criteriosa quanto à vacinação daqui em diante, sobretudo, porque o ritmo de vacinação continua lento e muito aquém do necessário.
O planejamento da imunização e as ações de vigilância e controle epidemiológico não podem ignorar os efeitos desiguais da pandemia sobre a população e é fundamental reconhecer o fator racial como uma determinante social sobre saúde, assim como um elemento-chave nas ações de combate ao coronavírus. Neste sentido, também é importante compreender os efeitos desiguais da pandemia sobre o território, estendendo as análises da mortalidade por Covid-19 através de leituras espaciais.
Na última segunda-feira (17/05), o Largo da Memória – local histórico de resistência em São Paulo e um dos principais monumentos da cidade – foi cenário de um projetaço organizado por 37 coletivos que compõem a rede Juventudes nas Cidades, com o apoio da Ação Educativa e do Instituto Pólis, que juntos coordenam as atividades do projeto na capital paulista.
Enquanto dezenas de trabalhadores voltavam para a casa, a empena localizada em cima do metrô Anhangabaú e próxima ao Terminal Bandeira foi estampada com pedidos para o uso de máscaras e vacinas e estatísticas que mostram quem são as pessoas mais afetadas pela pandemia – pretos e pobres. Foram mais de duas horas de projeção, feita em parceria com o Coletivo Coletores, organização que pensa a cidade como meio e suporte para suas ações, a partir de arte interativa e digital.
Em parceria com o coletivo Onilé, também foram distribuídos projetores de mão para integrantes do projeto, e que possibilitaram a projeção dos materiais em territórios periféricos da cidade, como São Mateus, Grajaú, Carrão, Sapopemba, Rio Pequeno, Butantã e Vila Tiradentes.
As artes estão disponíveis para download aqui, e podem ser utilizadas nas redes sociais, projetaços, cartazes… Só não esqueça de registrar, e usar a #PandemiadaPontepraCá.
Na subida do morro é diferente
Desde o início da pandemia, jovens das periferias da capital paulista têm relatado a carência de políticas públicas no combate à Covid-19 em seus territórios. A falta de recursos, protocolos de saúde ineficazes no contexto da periferia e as dificuldades de cuidar da saúde mental são os que causam mais preocupação.
É possível ver que a pandemia não só piorou os problemas já conhecidos nos territórios periféricos, como os tornou mais complexos e trouxe novos obstáculos. Falta de saneamento e água, acesso restrito a equipamentos de proteção, como máscaras e álcool em gel, e interrupção de serviços sociais são apenas a ponta do iceberg.
“Aqui em casa, às sete horas da noite cortam a água. Isso já dificulta a higiene pessoal, tão importante agora na pandemia”, diz Maya Guedes, integrante dos coletivos Transferência e Entre Vielas, ambos localizados no Grajaú, na Zona Sul da cidade. “E nem sempre produtos para a limpeza são opção. Às vezes também não temos condição de comprar sabonete, álcool em gel”, acrescenta.
Em relação ao uso de máscaras, preço e desinformação atrapalham o esforço de proteger a população. “A gente tem enfrentado muitas fake news com relação às informações da pandemia. Já vi pessoas dizendo que não confiam na vacina.”, exemplifica Thaís Oliversi, do Coletivo Periferia Preta, atuante no distrito de Sapopemba, Zona Leste de São Paulo.
Para Mayana Vieira, do coletivo Slam do Grajaú, na região Sul, nem todos os protocolos de saúde funcionam para a população da periferia, principalmente trabalhadores. “O distanciamento social é quase impraticável. Quem continua saindo para trabalhar tem que enfrentar trens e ônibus lotados, no Terminal Grajaú em horário de pico, por exemplo, é impossível manter um distanciamento de 2 centímetros por pessoa, quiçá 2 metros”, afirma.
Essas e outras discussões foram compartilhadas na live “Na Subida do Morro é Diferente: Realidades das Juventudes em Pandemia”, com a presença da covereadora Carolina Iara, e integrantes de coletives das quatro capitais em que o Juventudes nas Cidades atua: Jarda Araújo (PE), Rayssa Pereyra (RJ), Ruan Guajá (DF) e Thais Oliversi (SP). A mediação foi de Jahpam (SP). O papo teve como tema a realidade das juventudes durante a pandemia do coronavírus, e aconteceu simultaneamente ao projetaço. Assista na íntegra no link abaixo:
Acesso à internet
O desafio de adequar as atividades para o online é outra das questões que dificultam a manutenção de protocolos nesses territórios. “Acesso à internet ainda é algo limitado em algumas periferias. Então como mantemos crianças estudando? Como trabalhamos de casa? Como consumimos cultura e divulgamos nossos trabalhos sendo que o online é limitante e o trabalho de rua se tornou um risco?”, questiona Pamella de Mendonça, conhecida como Jahpam, do coletivo Reggae Action, da Zona Leste de São Paulo.
Continuar as ações afirmativas em seus territórios não é um desafio apenas do coletivo da Pamella. De acordo com Raquel Luanda, que integra a equipe de coordenação do programa Juventude nas Cidades na capital paulista, o trabalho de coletivos que atuam na periferia é muito pautado na abordagem de rua para divulgar suas produções e ativismo. Uma vez que a rua não é mais uma opção, muitos trabalhos foram quase paralisados.
“Desde o começo da pandemia o maior desafio é pensar em como dar conta de levar transformações e reflexão para os jovens e coletivos que trabalhamos que, muitas vezes, não têm acesso à internet para ver nossa agenda, nossas produções. Tanto sobre questões culturais, como também informações de saúde, serviços e ajuda humanitária. As políticas públicas atuais não consideram essas realidades e praticamente abandonam uma parte da população”, diz Raquel, que lembra que muitos coletivos migraram para trabalhos humanitários ao invés de dar continuidade às suas ações.
A partir deste panorama, o programa Juventude nas Cidades disponibilizou chips com 20GB de internet para os jovens que participam do projeto. Além de assegurar a presença deles nas ações, ajudou a despertar a reflexão sobre direitos digitais.
Saúde mental
Todos esses obstáculos também serviram para impactar na saúde da população das periferias. Com o controle da pandemia prejudicado, a taxa de infecções nesses territórios só cresce. Isso, segundo os jovens ouvidos, impediu que muitas pessoas buscassem atendimento médico por medo da Covid-19. A saúde mental também foi afetada.
“Como eu vou ter concentração para escrever um texto para um edital se a vida está desse jeito? Se eu não estou conseguindo pagar o meu aluguel? Às vezes, eu tenho o mínimo, mas quem está andando comigo não.”, relata Esther Rodrigues De Oliveira, do coletivo Mulekalê.
O Juventude nas Cidades, em parceria com o Instituto AMMA Psique e Negritude – organização não governamental de enfrentamento ao racismo, formado por um grupo de psicólogas – ofereceu tratamento no qual os jovens puderam refletir sobre os primeiros impactos da pandemia em suas vidas.
Juventude nas Cidades: ações
Entre os dias 14 e 15 de maio, a Oxfam Brasil, em parceria com as instituições que coordenam o programa Juventudes na Cidade no Brasil, promoveu o 1º Festival Juventudes nas Cidades. O evento foi inteiramente online, e contou com 24 atrações de arte e cultura organizadas por coletivos de jovens de São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Distrito Federal.
Mesmo com os obstáculos impostos pela pandemia, os jovens participantes do programa Juventude nas Cidades também desenvolveram uma série de ações voltadas para formação e com foco nos coletivos culturais, no último ano. São elas:
Cartilha para inscrição de projetos em editais públicos – O documento foi criado a partir de oficina colaborativa que incentivou os jovens a pensarem na sustentabilidade dos coletivos culturais periféricos. Acesse aqui.
Ações integradas sobre a cultura de segurança para defensores de direitos humanos – A atividade envolveu encontros e um episódio do podcast Rádio Juv, sobre vigilância, privacidade e segurança. Também foi produzido um painel que ilustra as motivações dos coletivos e o que fazer para garantir a proteção física e digital dos ativistas.
Carta manifesto – O documento foi destinado a candidatos(as) a vereadores(as) nas eleições municipais de São Paulo de 2020. Elaborado a partir de encontros quinzenais que incentivaram troca de saberes e debates de pautas prioritárias aos jovens, requisitou direitos à empregabilidade, renda e suas intersecções nas dimensões de raça, orientação e identidade de gênero, dentre outras. O manifesto completo está disponível aqui.
O Juventude nas Cidades é uma iniciativa nacional das organizações Oxfam Brasil, Ação Educativa, ONG Fase, IBASE, INESC e Criola.
Um ano após o primeiro caso de covid-19 no Brasil, estamos no pior momento da pandemia: são mais de 250 mil mortes decorrentes da doença. Para tentar entender a dimensão desse número, o comparamos com a população dos distritos de São Paulo. 250 mil pessoas equivale aproximadamente ao total de habitantes da Cidade Tiradentes ou do Sacomã. Esse valor também corresponde à soma da população de Moema, Campo Belo e Itaim Bibi. Ou todos habitantes da República, Santa Cecília, Bom Retiro e Consolação juntos.
Em um ano, morreu o equivalente à soma da população dos 146 menores municípios do país. Mais de 140 cidades brasileiras teriam desaparecido nesse intervalo de tempo.
Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas com políticas públicas que fossem de fato pensadas para preservação da vida, considerando os estudos e pesquisas que especialistas do mundo todo tem feito para entender o comportamento do vírus, e a realidade de cada território. O uso de máscaras adequadas e o distanciamento social são medidas efetivas, porém, em um país desigual como o Brasil, só essas recomendações não bastam para conter o avanço do vírus. É preciso dar condições para que as populações mais vulneráveis consigam se isolar, como alertamos desde o começo da pandemia. Por exemplo, medidas como o toque de recolher das 23h às 5h, como o que está acontecendo na cidade de São Paulo atualmente, se mostram pouco eficazes, já que é sabido que as pessoas que precisam se deslocar para trabalhar são mais atingidas pela covid-19, como mostramos em estudo divulgado ano passado feito em parceria com o LabCidade.
Depois de um ano, estamos todes cansades de falar sobre a covid-19. Mas precisamos continuar pressionando as autoridades para que medidas de combate à pandemia – lockdown efetivo, auxílio emergencial, dentre outras – sejam implementadas com urgência, e para que a ciência seja o principal critério para a manutenção do direito à vida de toda a população.
Confira todos os textos e estudos que publicamos até agora sobre a covid-19:
Vacinar grupos etários prioritários (idosos) em regiões específicas das cidades pode ser uma estratégia mais eficiente no atual cenário de escassez de doses. É o que sugere estudo do Instituto Pólis realizado a partir do mapeamento da mortalidade por Covid-19 na cidade de São Paulo ao longo de 2020. Os dados revelam que priorizar áreas onde estão as populações mais impactadas pela pandemia é fundamental para avançar na tarefa de imunizar a população da capital paulista diante da quantidade insuficiente de imunizantes.
Vacinar grupos por critérios territoriais, concentrando os imunizantes em determinadas zonas, poderia criar “bolhas de imunidade” mais rapidamente. Essas bolhas se comportariam como barreiras físicas à circulação do vírus, com potencial de reduzir a taxa de contágio nas cidades como um todo. Além de imunizar alguns segmentos populacionais por inteiro – mesmo que localmente – poderia contribuir na redução da disseminação para outras áreas menos atingidas. Além disso, é fundamental definir a priorização a partir de um diagnóstico epidemiológico que traga inclusão e o enfrentamento das desigualdades em saúde.
Desde o início da pandemia no Brasil muito tem se debatido acerca dos impactos nos diferentes territórios e segmentos sociais. Algo fundamental tanto para encontrar os melhores meios de prevenir a difusão da doença como de proteger aqueles que estão mais vulneráveis. Entretanto a forma como às informações e os dados têm sido divulgados não auxilia na análise dos impactos territoriais e da difusão espacial da pandemia, dificultando também o seu devido enfrentamento.
Na cidade de São Paulo a escala de análise da pandemia ainda são os distritos, que correspondem a porções enormes do território e com população maior do que muitas cidades de porte médio. Essa visão simplificadora ignora as heterogeneidades e desigualdades territoriais existentes na cidade. Conforme apontamos anteriormente, infelizmente a dimensão territorial não é considerada de forma adequada, prevalecendo uma leitura simplificada e, até mesmo, estigmatizada, como por exemplo quando se afirma ”onde tem favela tem pandemia”.
Em artigo anterior, apresentamos o resultado de pesquisa em outra escala, a da rua. Para tanto mapeamos às hospitalizações e óbitos pós internação pela COVID-19 a partir do CEP – informação fornecida nas fichas dos pacientes hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda e Grave (SRAG) incluindo COVID-19 e disponibilizadas pelo DATASUS até aquele momento (18 de maio de 2020). Esse procedimento permitiu olhar mais detalhadamente para a distribuição territorial da pandemia, e assim evidenciar a complexidade de questões que explicam a sua difusão espacial, não apenas a precariedade habitacional e a presença de favelas.
A partir desta constatação passamos a investigar outros possíveis elementos explicativos, entre eles, a mobilidade urbana durante o período da pandemia, especificamente compreendendo o fluxo de circulação das pessoas na cidade e como isso influencia na difusão espacial da COVID-19. Com base nos dados disponibilizados pela SPTrans sobre dados de GPS dos ônibus, e a partir do roteamento de viagens selecionadas da Pesquisa Origem Destino de 2017, buscamos identificar de onde saíram e para onde foram as pessoas que circularam de transporte coletivo no dia 5 de junho, dia em que, segundo a SPTrans, cerca de 3 milhões de viagens foram realizadas usando os ônibus municipais.
Ao mesmo tempo, fizemos uma leitura territorial sobre a origem das viagens durante o período de pandemia. Para esta análise identificou-se na Pesquisa Origem Destino (2017) as pessoas que usam transporte público como modo principal para chegar ao seu destino, motivadas pela ida ao local de trabalho. Consideramos apenas as viagens realizadas por pessoas sem ensino superior e em cargos não executivos. Esse perfil foi selecionado considerando que pessoas com ensino superior, em cargos executivos e profissionais liberais tenham aderido ao teletrabalho e que viagens com outras motivações, como educação e compras, pararam de ocorrer.. Esses dados de mobilidade foram correlacionados com os dados de hospitalizações por SRAG não identificada, e COVID-19, até o dia 18 de maio, última data para qual o dado do CEP no DATASUS estava disponibilizado pelo Ministério da Saúde.
Desta forma produzimos um mapa que ilustra a distribuição dos lugares de origem das viagens diárias, a partir de uma distribuição que considera número de viagens nas zonas origem-destino e distribuição populacional dentro dessas zonas. O resultado mostra uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens das viagens com as manchas de concentração do local de residência de pessoas hospitalizadas com COVID-19 e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) sem identificação, possivelmente casos de COVID-19, mas que não foram testados ou não tiveram resultado confirmado.
Com base neste estudo, pode-se dizer que, em síntese, quem está sendo mais atingido pela COVID são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar. Embora tenhamos mapeado os locais que concentram os maiores números de origens ou destinos dos fluxos de circulação por transporte coletivo, não é possível ainda afirmar se o contágio ocorreu no percurso do transporte, no local de trabalho ou no local de moradia, o que vai exigir análises futuras, que serão realizadas no âmbito desta pesquisa. Mas o que está evidente é que quem saiu para trabalhar e realizou percursos longos de transporte coletivo é que quem foi mais impactado pelos óbitos ocorridos. Enquanto esse fator mostrou associação forte com os casos de hospitalizações por SRAG não identificada e COVID-19, a densidade demográfica – frequentemente associada a áreas favelizadas e bairros populares – apresentou associação fraca.
Ainda que preliminares, esses dados apontam para a incoerência e inconsequência da abertura planejada pelas prefeituras e governo do estado. A reabertura de comércios e restaurantes implica em aumentar significativamente o número de áreas de origens com mais densidades de viagens e maior circulação de pessoas no transporte público. Se o maior número de óbitos está nos territórios que tiveram mais pessoas saindo para trabalhar durante o período de isolamento, temos que pensar tanto em políticas que as protejam em seus percursos como ampliar o direito ao isolamento paras as pessoas que não estão envolvidas com serviços essenciais mais precisam trabalhar para garantir seu sustento, o que reforça a importância de políticas de garantia de renda e segurança alimentar, subsídios de aluguel e outras despesas, e ações articuladas a coletivos e organizações locais para a proteção dos que mais estão ameaçados durante a pandemia.
Embora esses dados sejam públicos, nos parece que estão sendo ignorados para a definição de estratégias de enfrentamento a pandemia. É urgente repensar a forma como a política de mobilidade na cidade tem sido pensada, já que foram cometidos equívocos tal como o mega rodízio para veículos individuais, que durou apenas alguns dias e provocou uma superlotação nos transportes públicos ampliando os riscos das pessoas que precisavam sair para trabalhar. Ainda não foram implementadas medidas que garantam condições seguras para que as pessoas dos serviços essenciais pudessem fazer as viagens necessárias para exercer seus trabalhos sem ampliar a difusão da infecção do coronavírus. Bem como não existe uma leitura sobre a mobilidade metropolitana – inclusive não existem dados abertos sobre isso – ignorando as dinâmicas pendulares de pessoas que moram e trabalham em municípios diferentes da região metropolitana.
Esse texto é uma parceria do Labcidade e Instituto Pólis. Os autores são: Aluizio Marino, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Raquel Rolnik, Paula Santoro e Pedro Mendonça
Os mapas são instrumentos utilizados há séculos no combate a epidemias e problemas de saúde pública. No contexto atual da pandemia do novo coronavírus, verificamos uma efervescente produção cartográfica, tanto mapas institucionais – produzidos pelo Estado – como mapas ativistas – por meio da parceria de pesquisadores e movimentos sociais.
Entretanto os mapas são representações e mostram apenas uma parte da realidade, todo mapa é resultado de uma escolha que ilumina alguns aspectos e ignora outros. Ou seja, mais do que um repositório de dados, são instrumentos políticos. A escolha da escala (região, distrito, bairro, rua) é um dos principais elementos que definem aquilo que ele quer comunicar, suas narrativas.
Em São Paulo os mapas que analisam o avanço do coronavírus são reproduzidos ou elaborados a partir dos boletins epidemiológicos da Secretaria Municipal de Saúde.Esses mapas mostram a relação de casos e óbitos por COVID-19 pelo distrito de residência do paciente. Distritos são áreas muito grandes, agregam diferentes bairros, quebradas e vilas. Mesmo com o número de óbitos elevado é necessário relativizar esse dado com dimensão e a população residente do distrito. Infelizmente, sendo o epicentro da epidemia da COVID-19, São Paulo ainda não possui informações territorializadas que detalham o avanço do novo coronavírus e os impactos nos diferentes lugares da cidade.
Cabe destacar que essa constatação não é novidade. Os mapas institucionais, de maneira geral, apresentam um visão global da cidade, ignorando as informações e especificidades locais.
(Fonte: G1 e Prefeitura de São Paulo)
A narrativa do mapa acima relaciona a expansão do vírus à presença de favelas e conjuntos habitacionais, entretanto não é possível afirmar isso a partir dos dados por distritos. O exemplo da Brasilândia – distrito com maior número de mortes confirmadas e suspeitas por COVID-19 – é ilustrativo: ali viviam na última coleta do Censo em 2010 (IBGE) mais de 280 mil pessoas. – Números de uma cidade de médio porte , sendo que nem todos residem em favelas. O caso de Paraisópolis também se contrapõe à ideia de que distritos com mais favelas apresentam um indicador maior de letalidade ao COVID19: onde está localizada uma das maiores favelas de São Paulo, os números de óbitos está entre as menores faixas entre os distritos. Há também outros distritos periféricos como São Rafael, no extremo Leste de São Paulo que apesar de conter grandes extensões de favelas apresenta número de óbitos menores do que os distritos do centro expandido. Portanto, um olhar mais atento a este mapa nos mostra que não é necessariamente a presença de favelas o indicador central que leva à maior letalidade por COVID19.
Mas então o que territorialmente pode explicar o maior número de mortes em um distrito? Não podemos responder esta pergunta neste momento, simplesmente porque não temos dados disponíveis para olhar com mais profundidade o território da cidade!
Faremos aqui uma discussão desses mapas e informações que estão disponíveis a partir de duas perspectivas, a primeira com relação a qualidade dos dados, apontando soluções técnicas para que possam ser aperfeiçoados; a segunda explora as intencionalidades políticas dessas cartografias institucionais.
Para enfrentar o coronavírus, precisamos saber o CEP
Uma análise mais profunda exige os dados por CEP, ou seja pelo endereços das pessoas infectadas, de forma com que seja possível analisar a localização dos focos da doença sem expor informações particulares destas pessoas.
A análise dos dados em menor escala deve considerar ainda a relação entre os óbitos e a população de cada local. Analisando os óbitos por COVID-19 (confirmados e suspeitos) por distrito entre 11 de março e 24 de abril, o Pari, por exemplo, desponta com 52 óbitos para cada cem mil habitantes. De uma forma geral os distritos da Zona Leste 1 – Água Rasa, Belém, Artur Alvim – também aparecem nessa situação, com elevada taxa de mortalidade por habitante.
No momento atual da pandemia é fundamental para subsidiar as estratégias de combate da proliferação do contágio e das mortes o monitoramento detalhado da evolução de casos e óbitos pelo território. Este monitoramento permitirá identificar possíveis fatores sociais, territoriais ou de ineficiência de políticas públicas para a maior letalidade em um território específico e a partir desta identificação a construção das políticas emergenciais adequadas a cada lugar.
Nos territórios já se multiplicam ações autogestionadas que precisam ser potencializadas, além de recursos financeiros, humanos e logísticos é essencial que o poder público forneça informações que identifiquem precisamente as dinâmicas de contágio em cada lugar da cidade.
Existem experiências que mostram caminhos. Desde início de abril, a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Pernambuco disponibiliza informações detalhadas em plataforma online interativa, permitindo ao usuário visualizar o avanço do coronavírus na escala da rua. Os dados são atualizados diariamente e protegem a localização exata das pessoas infectadas, cada caso é representado por um perímetro de 50 metros. como manchas que indicam os locais mais expostos ao vírus. Desse modo, se percebe exatamente em que local, em que condições, se dá uma possível concentração de casos. Assim, é possível traçar uma estratégia territorial mais focada e precisa no enfrentamento da pandemia.
De qualquer maneira, os dados existentes evidenciam nesse momento uma diferença muito grande de acesso a leitos hospitalares em São Paulo — algo já conhecido na cidade. Por isso, na zona leste, movimentos, coletivos e organizações têm se mobilizado para que se monte um novo hospital de campanha para atendimento de seus moradores. Nos parece justo, visto que a região é de fato a mais populosa do município e necessita de uma estrutura de saúde um pouco mais próxima aos locais onde o surto é crítico.
Mapas não são neutros…
Os dados disponíveis até o momento não permitem fazer nenhuma afirmação sobre o avanço da COVID-19 nas favelas. A questão que fica é: a que serve essa narrativa? A questão sanitária já foi justificativa para a remoção e eliminação de muitas favelas e cortiços na história do Brasil, por isso deve-se ter muita cautela com a reprodução desse discurso.
A simples afirmação de que o novo coronavírus avança pelas favelas não fornece elementos que auxiliem no combate à pandemia. Pelo contrário, pode reforçar preconceitos de parte da sociedade, que enxergam as favelas como lugar de marginal, de bandido, de sujeira, e que, portanto, precisam ser eliminadas.
O combate à pandemia exige mais do que soluções técnicas orientadas a partir de dados. É fundamental que se estabeleça um compromisso político que envolva toda a sociedade pela proteção da população periférica durante e depois da pandemia.
Todavia necessitamos de uma visualização mais precisa da evolução da doença, em uma escala muito mais aproximada, que nos permita entender o que está acontecendo em cada lugar. Isso precisa ser feito para orientar respostas consistentes a cada contexto, precisaríamos saber a situação de cada pedaço da cidade, inclusive das favelas. Trata-se de uma informação estratégica para desenhar uma política efetiva de combate aos efeitos da pandemia.
Esse texto é uma parceria do Instituto Pólis com o Labcidade. Escrito por Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Pedro Mendonça, com colaboração de Vitor Nisida e Lara Cavalcante.
Publicamos há menos de um mês uma discussão acerca dos mapas oficiais sobre a COVID-19 em São Paulo (veja aqui). Mostramos que na medida em que esses mapas escondiam informações isto impossibilitava a elaboração de políticas públicas efetivas de combate à pandemia. Poucos dias depois ficou evidente a falta de uma estratégia territorializada, já que as iniciativas adotadas pelos governos municipal e estadual de São Paulo para garantir o isolamento social – como o “mega rodízio” e o “feriadão”-, não funcionaram.
Nessa semana, mesmo assistindo ao aumento do contágio pelo novo coronavírus, o Governo do Estado de São Paulo iniciou um plano de retomada das atividades econômicas e serviços não essenciais. O Plano São Paulo prevê essa retomada em cinco fases de forma gradual, sendo a fase 1 com mais restrições e a fase 5 com mais atividades liberadas.
Embora seja importante planejar a retomada da economia, impactada pelas medidas de isolamento social, o plano lançado pelo Governo do Estado sofreu inúmeras críticas. Tais críticas apontam, por um lado, que a retomada ainda é precoce e que a atual fase de contágio no estado de São Paulo exigiria medidas mais duras visando a restrição de circulação das pessoas, chamadas também de lockdown; que evidentemente deveriam ser compensadas por medidas de proteção social que garantisse a possibilidade de isolamento para a população de forma geral. Por outro lado, também foi criticada a definição de fases mais restritivas em municípios da Região Metropolitana de São Paulo que apresentam índices (com base nos critérios adotados pelo plano) melhores que o da capital.
O plano de retomada apresenta outra problemática que abordaremos aqui: ele simplifica o território, abstraindo uma série de fatores essenciais para a construção de um planejamento sólido. O lançamento do plano já deixou evidente essa simplificação, apresentando a escala de ação a partir de 17 regiões do território paulista, denominadas “Departamentos Regionais de Saúde”. Na proposta inicial a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) estava dividida em dois departamentos: (i) a capital; e (ii) todos os outros 38 municípios. Evidente que essa simplificação gerou inúmeras críticas por parte dos gestores locais, como resultado o Governo do Estado ampliou a subdivisão da RMSP. Além da capital, foram definidos cinco recortes territoriais: Norte, Sudeste/ABC, Leste/Alto Tietê, Sudoeste e Oeste.
Mesmo com as mudanças adotadas pelo Governo do Estado, ainda persiste a simplificação de um território bastante complexo e, sobretudo, heterogêneo. A leitura com base de indicadores da capacidade de atendimento da rede de saúde desconsidera elementos urbanísticos essenciais para se pensar em maiores ou menores propensões ao contágio. Desconsidera o fato de que os municípios da RMSP possuem relações e conexões cotidianas, em especial de pessoas que moram em outros municípios e vêm à capital para trabalhar, podendo ampliar a difusão do COVID19 neste fluxo entre casa e trabalho. O plano de retomada proposto dessa forma escancara a ausência de uma estratégia regional territorializada que compreenda a multiplicidade de paisagens e dinâmicas sociais existentes na metrópole e como isso afeta a difusão espacial da doença.
É urgente uma abordagem multidisciplinar para a RMSP, um dos epicentros da pandemia, com a presença não somente de profissionais da saúde, mas também de geógrafos, urbanistas, sociólogos e outros profissionais que pensam o território.
No sentido de contribuir e incidir sobre as políticas públicas emergenciais necessárias, continuamos empenhados em compreender a difusão espacial da COVID-19 em São Paulo. A partir das informações disponibilizadas recentemente via DATASUS elaboramos uma série de mapas temáticos e um mapa interativo. Os dados gerados estão disponibilizados em formato aberto.
Os mapas abaixo possibilitam análises mais precisas da difusão espacial da pandemia do que os mapas oficiais, que utilizam a escala dos distritos ou das cidades. Isso foi possível a partir da identificação do CEP de residência das pessoas que foram hospitalizadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), entre elas a COVID-19.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
Utilizamos os mapas de calor como forma de representá-los, uma técnica cartográfica que identifica os locais onde há a maior concentração de eventos, no caso desses mapas, de hospitalizações e óbitos pós-internação por COVID-19 no raio de um quilômetro. No mapa da esquerda , as manchas mais escuras correspondem aos locais com maior concentração de moradores que foram internados em hospitais com diagnóstico de COVID- 19. No lado direito a mesma leitura, só que mostrando as maiores concentrações de moradores que morreram entre aqueles que foram hospitalizados. A análise desses mapas deixa evidente a simplificação de uma leitura por distritos que são complexos e apresentam internamente diferentes contextos territoriais e de condições de urbanização, o que dirá da leitura por cidades ou regiões.
A sub notificação dos casos e óbitos por COVID-19 é um dos principais desafios para compreender a difusão da pandemia, por isso trabalhamos também com os casos de SRAG não identificados, e que muito provavelmente são devido a COVID-19. A idéia de incluir estes dados também se deve ao fato de ter aumentado muito este ano as internações por SRAG, em comparação aos anos anteriores.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
A leitura territorial por CEP das hospitalizações por SRAG, que tem grande aderência aos mapas de calor dos endereços dos hospitalizados com COVID-19 nos ajuda a complexificar o debate, ao mesmo tempo em que levanta várias indagações. Simplificações do tipo “onde tem favela tem COVID” ou padrões duais do tipo centro/periferia não se sustentam na busca de compreender os fatores que levam a determinados territórios ter uma maior concentração de casos ou óbitos. Para poder ler estes mapas com o devido cuidado é necessário ainda sobrepor com outros mapas/camadas – fluxos da mobilidade urbana, áreas de comércio e intensa circulação, localização de hospitais e de locais de moradia de profissionais de saúde, concentração de idosos, dados raciais – e sua leitura em múltiplas escalas. É o caminho que as equipes do Instituto Pólis e Lab Cidade ainda estão fazendo, em diálogo com parceiros.
O mapa a seguir, feito a partir de dados de uma unidade de saúde da Região Metropolitana, sugere que, ainda no início da expansão da doença, havia uma associação forte entre os casos de Covid-19 e moradores de áreas com grande fluxo de circulação, em função da presença de áreas comerciais e terminais de transporte. Nesta mesma base de dados identificou-se que 42,8% dos pacientes testados positivos nesta unidade eram profissionais de saúde, que somados informaram ter estabelecido contato com 69 pessoas no interior de suas casas, a maior parte deles, residente da mesma região onde está localizado o equipamento.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
Evidente que os mapas disponibilizados aqui não representam a totalidade de casos e óbitos, somente aqueles que foram hospitalizados (DATASUS) ou atendidos pela unidade de saúde mapeada. Além disso existem várias lacunas que precisam ser consideradas: uma parcela considerável dos dados não está representada no mapa, pois não constava a informação relativa ao CEP; os dados são oriundos das fichas médicas, preenchidas pelos profissionais que atuam na linha de frente dos hospitais, que sob forte pressão podem cometer equívocos ou até mesmo omitir informações durante o preenchimento. Ainda assim, eles sinalizam fortemente a necessidade de considerar a heterogeneidade dos territórios para entender – no caso específico de cada cidade – as formas através das quais a epidemia tem se difundido espacialmente e assim traçar estratégias seguras e enraizadas de prevenção e atendimento à saúde.
Esse texto é uma parceria do Instituto Pólis com o Labcidade. Escrito por Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Pedro Mendonça, com colaboração de Vitor Nisida e Lara Cavalcante.
“Para entender a pandemia à moda brasileira é preciso conhecer o Brasil”. O texto das pesquisadoras do Pólis, Cássia Caneco, Graciela Medina e Jéssica Tavares reflete sobre como as desigualdades de raça, gênero e classe constroem diferentes narrativas de futuro pós-pandemia no país.
“Enquanto vivemos a coronacrise, uma outra nos assombra cotidianamente: a naturalização dos abismos entre as condições de vida. A hierarquização da cidadania, daltônica, impede dizer a raça/cor das filas na porta das agências da Caixa Econômica. Naturalizar diferenças não somente silencia debates de raça no Brasil, mas também atrasa a resposta para transformar boletins de mortes em políticas públicas. Políticas que não sejam higienistas e excludentes. Decoloniais.”