A comparação entre as áreas mais impactadas por Covid-19 e as áreas que concentram ameaças ou remoções revela algumas semelhanças. Em algumas regiões há sobreposições, tanto em relação às concentrações de óbitos, quanto às áreas com altas taxas de mortalidade, demonstrando camadas de vulnerabilidades às quais os moradores destes territórios são expostos. O perfil socioeconômico das áreas com ameaças ou com remoções é caracterizado pela presença de famílias cuja renda média domiciliar é consideravelmente inferior à média municipal, com um percentual maior de domicílios de baixa renda chefiados por mulheres e acesso abaixo da média à água encanada e esgotamento sanitário. Além de ser predominantemente composto por pessoas pretas e pardas que, por sua vez, representam o grupo populacional com as maiores taxas de mortalidade por Covid-19 desde o início da pandemia.
Essa constatação faz parte do estudo recém-publicado pelo Pólis, cujo objetivo é investigar as camadas de vulnerabilidade às quais as famílias ameaçadas constantemente de remoção estão expostas em meio à crise sanitária, na qual a moradia adequada é uma estrutura básica fundamental para proteger a si e as demais pessoas da contaminação pelo vírus. Para saber mais, veja o estudo na íntegra aqui.
Ao longo de 2020 e 2021, dados sobre hospitalizações, óbitos e vacinação foram reunidos em análises que propuseram fazer leituras urbanas sobre a pandemia na cidade. Além de mapear seus impactos, notadamente desiguais no território e nos diferentes grupos populacionais, esses estudos também buscaram demonstrar a importância de certas estratégias para o adequado monitoramento epidemiológico, controle do contágio e preservação da vida, primando pela redução das iniquidades sociais e pela afirmação de direitos.
Este novo estudo faz um balanço sobre os dados da mortalidade por Covid-19 no Município de São Paulo (MSP) entre 2020 e 2021 e tem como objetivo sintetizar leituras acerca da pandemia na capital paulista, como forma de reforçar algumas recomendações centrais para o enfrentamento da emergência sanitária, que acelerou seu crescimento na nova onda de contágios e mortes.
Com o avanço gradual das etapas de imunização, grupos cada vez mais jovens e mais numerosos se habilitam para a vacinação contra a Covid-19. Mas o fato de a imunização prioritária das faixas etárias mais idosas ter sido minimamente atendida não diminui a necessidade de termos uma priorização criteriosa quanto à vacinação daqui em diante, sobretudo, porque o ritmo de vacinação continua lento e muito aquém do necessário.
O planejamento da imunização e as ações de vigilância e controle epidemiológico não podem ignorar os efeitos desiguais da pandemia sobre a população e é fundamental reconhecer o fator racial como uma determinante social sobre saúde, assim como um elemento-chave nas ações de combate ao coronavírus. Neste sentido, também é importante compreender os efeitos desiguais da pandemia sobre o território, estendendo as análises da mortalidade por Covid-19 através de leituras espaciais.
Novo estudo realizado pelo Instituto Pólis mostra que grande parte das vítimas fatais de Covid-19 em São Paulo, entre março de 2020 a março de 2021, é de profissionais que não concluíram a educação básica, e que não interromperam as atividades. De acordo com os números da pesquisa, pedreiros, empregadas domésticas e motoristas de carros de aplicativo estão entre as ocupações mais afetadas pela doença.
O estudo utilizou informações sobre os óbitos por Covid-19 na cidade de São Paulo entre março de 2020 e março de 2021. Os dados foram coletados do SIM PRO-AIM (Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade), coordenado pela Secretaria de Saúde do Município de São Paulo. A partir dessas informações, o Pólis identificou 737 ocupações das vítimas, classificadas de acordo com o código CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), e as organizou em categorias de atividades, agrupadas segundo o setor econômico, tipo de atuação, nível de exposição do trabalhador e possibilidade de trabalho remoto.
A fim de detectar características em comum das pessoas envolvidas naquelas atividades mais atingidas, também foram analisadas informações sobre a escolaridade, faixa etária, local de residência, raça e sexo das vítimas. Durante o período analisado, foram registradas 30.796 mortes por Covid-19 em São Paulo. Destes, 23.628 (76,7%) foram de pessoas que não completaram o ciclo de educação básica, ou seja, tinham 11 anos ou menos de estudo. Considerando a escolaridade das vítimas como uma proxy sobre seu padrão de renda, os dados confirmam que a mortalidade de Covid-19 é maior entre trabalhadores e trabalhadoras mais pobres.
É preciso conhecer a fome para descrevê-la, dizia Carolina Maria de Jesus. Para ela, a fome era amarela e empalidecia tudo ao redor: o céu, as árvores, as aves, todas as cores se desbotavam diante de seus olhos. Nas palavras da poetisa, a sensação de ter somente ar no estômago era como um soco que lhe atingia em cheio. Carolina escreveu o diário “Quarto de Despejo”, que posteriormente se tornaria um livro, entre 1955 e 1960, mas suas palavras e sentimentos ainda reverberam na atualidade. Hoje, a realidade vivida por ela, décadas atrás, é compartilhada por ao menos 19 milhões de brasileiros que sobrevivem à fome, além de outros 116 milhões que encontram-se em situação de insegurança alimentar, ou seja, com o acesso a uma alimentação devidamente adequada reduzido.
Em virtude disso, e dos poucos esforços do governo para erradicar as desigualdades descortinadas pela pandemia. Muitas entidades e coletivos se reuniram para criar campanhas solidárias, na intenção de ajudar famílias em situação de vulnerabilidade social a atravessar este momento de pandemia. A seguir, separamos algumas destas campanhas abaixo:
Sem casa e com fome Campanha feita pela União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), para distribuição de cestas básicas às famílias vulneráveis em ocupações urbanas, favelas, cortiços e mutirões: https://bit.ly/3tWRfc9
Consciência Negra é ajudar a quebrada a se manter viva Campanha de apoio permanente para famílias negras e periféricas, feita pela Uneafro para distribuição de cestas básicas e itens de higiene em 44 territórios do país: https://bit.ly/3bCzdp4
Crédito Comunitário Contra a fome Campanha organizada pela União por Moradia Popular da Bahia (UMP-BA), para criação de uma moeda comunitária destinada às famílias ocupantes da obra do Condomínio das Mangueiras, em Salvador: https://bit.ly/3bExJLf
Bixiga Sem fome Campanha para distribuição de cestas básicas e marmitas pela região do Bixiga e proximidades. As doações podem ser feitas via PIX, PicPay ou nos pontos de arrecadação. Veja mais informações abaixo:
Se tem gente com fome, dá de comer! Campanha nacional de arrecadação de fundos para o enfrentamento a fome, a miséria e a violência durante a pandemia: https://www.temgentecomfome.com.br/
Cesta Básica para os Camelôs Campanha feita pelo Movimento Unido dos Camelôs para distribuição de cestas básicas e itens de higiene para camelôs do Rio de Janeiro: https://bit.ly/3f20tzC
A população do Bom Retiro precisa de você! Feita pela Rede Cuide do Bom Retiro, os valores arrecadados serão destinados às iniciativas que beneficiam pessoas em situação de vulnerabilidade no território do Bom Retiro e região: https://benfeitoria.com/bomretiro
Para conferir mais iniciativas e campanhas, confira o mapa interativo criado pelo Fundo solidário Rede de Apoio Humanitário ao combate da Covid-19. Nele, é possível encontrar outros lugares, coletivos e organizações da cidade de São Paulo que estão arrecadando valores para distribuição de cestas básicas, clique aqui.
Na última segunda-feira (17/05), o Largo da Memória – local histórico de resistência em São Paulo e um dos principais monumentos da cidade – foi cenário de um projetaço organizado por 37 coletivos que compõem a rede Juventudes nas Cidades, com o apoio da Ação Educativa e do Instituto Pólis, que juntos coordenam as atividades do projeto na capital paulista.
Enquanto dezenas de trabalhadores voltavam para a casa, a empena localizada em cima do metrô Anhangabaú e próxima ao Terminal Bandeira foi estampada com pedidos para o uso de máscaras e vacinas e estatísticas que mostram quem são as pessoas mais afetadas pela pandemia – pretos e pobres. Foram mais de duas horas de projeção, feita em parceria com o Coletivo Coletores, organização que pensa a cidade como meio e suporte para suas ações, a partir de arte interativa e digital.
Em parceria com o coletivo Onilé, também foram distribuídos projetores de mão para integrantes do projeto, e que possibilitaram a projeção dos materiais em territórios periféricos da cidade, como São Mateus, Grajaú, Carrão, Sapopemba, Rio Pequeno, Butantã e Vila Tiradentes.
As artes estão disponíveis para download aqui, e podem ser utilizadas nas redes sociais, projetaços, cartazes… Só não esqueça de registrar, e usar a #PandemiadaPontepraCá.
Na subida do morro é diferente
Desde o início da pandemia, jovens das periferias da capital paulista têm relatado a carência de políticas públicas no combate à Covid-19 em seus territórios. A falta de recursos, protocolos de saúde ineficazes no contexto da periferia e as dificuldades de cuidar da saúde mental são os que causam mais preocupação.
É possível ver que a pandemia não só piorou os problemas já conhecidos nos territórios periféricos, como os tornou mais complexos e trouxe novos obstáculos. Falta de saneamento e água, acesso restrito a equipamentos de proteção, como máscaras e álcool em gel, e interrupção de serviços sociais são apenas a ponta do iceberg.
“Aqui em casa, às sete horas da noite cortam a água. Isso já dificulta a higiene pessoal, tão importante agora na pandemia”, diz Maya Guedes, integrante dos coletivos Transferência e Entre Vielas, ambos localizados no Grajaú, na Zona Sul da cidade. “E nem sempre produtos para a limpeza são opção. Às vezes também não temos condição de comprar sabonete, álcool em gel”, acrescenta.
Em relação ao uso de máscaras, preço e desinformação atrapalham o esforço de proteger a população. “A gente tem enfrentado muitas fake news com relação às informações da pandemia. Já vi pessoas dizendo que não confiam na vacina.”, exemplifica Thaís Oliversi, do Coletivo Periferia Preta, atuante no distrito de Sapopemba, Zona Leste de São Paulo.
Para Mayana Vieira, do coletivo Slam do Grajaú, na região Sul, nem todos os protocolos de saúde funcionam para a população da periferia, principalmente trabalhadores. “O distanciamento social é quase impraticável. Quem continua saindo para trabalhar tem que enfrentar trens e ônibus lotados, no Terminal Grajaú em horário de pico, por exemplo, é impossível manter um distanciamento de 2 centímetros por pessoa, quiçá 2 metros”, afirma.
Essas e outras discussões foram compartilhadas na live “Na Subida do Morro é Diferente: Realidades das Juventudes em Pandemia”, com a presença da covereadora Carolina Iara, e integrantes de coletives das quatro capitais em que o Juventudes nas Cidades atua: Jarda Araújo (PE), Rayssa Pereyra (RJ), Ruan Guajá (DF) e Thais Oliversi (SP). A mediação foi de Jahpam (SP). O papo teve como tema a realidade das juventudes durante a pandemia do coronavírus, e aconteceu simultaneamente ao projetaço. Assista na íntegra no link abaixo:
Acesso à internet
O desafio de adequar as atividades para o online é outra das questões que dificultam a manutenção de protocolos nesses territórios. “Acesso à internet ainda é algo limitado em algumas periferias. Então como mantemos crianças estudando? Como trabalhamos de casa? Como consumimos cultura e divulgamos nossos trabalhos sendo que o online é limitante e o trabalho de rua se tornou um risco?”, questiona Pamella de Mendonça, conhecida como Jahpam, do coletivo Reggae Action, da Zona Leste de São Paulo.
Continuar as ações afirmativas em seus territórios não é um desafio apenas do coletivo da Pamella. De acordo com Raquel Luanda, que integra a equipe de coordenação do programa Juventude nas Cidades na capital paulista, o trabalho de coletivos que atuam na periferia é muito pautado na abordagem de rua para divulgar suas produções e ativismo. Uma vez que a rua não é mais uma opção, muitos trabalhos foram quase paralisados.
“Desde o começo da pandemia o maior desafio é pensar em como dar conta de levar transformações e reflexão para os jovens e coletivos que trabalhamos que, muitas vezes, não têm acesso à internet para ver nossa agenda, nossas produções. Tanto sobre questões culturais, como também informações de saúde, serviços e ajuda humanitária. As políticas públicas atuais não consideram essas realidades e praticamente abandonam uma parte da população”, diz Raquel, que lembra que muitos coletivos migraram para trabalhos humanitários ao invés de dar continuidade às suas ações.
A partir deste panorama, o programa Juventude nas Cidades disponibilizou chips com 20GB de internet para os jovens que participam do projeto. Além de assegurar a presença deles nas ações, ajudou a despertar a reflexão sobre direitos digitais.
Saúde mental
Todos esses obstáculos também serviram para impactar na saúde da população das periferias. Com o controle da pandemia prejudicado, a taxa de infecções nesses territórios só cresce. Isso, segundo os jovens ouvidos, impediu que muitas pessoas buscassem atendimento médico por medo da Covid-19. A saúde mental também foi afetada.
“Como eu vou ter concentração para escrever um texto para um edital se a vida está desse jeito? Se eu não estou conseguindo pagar o meu aluguel? Às vezes, eu tenho o mínimo, mas quem está andando comigo não.”, relata Esther Rodrigues De Oliveira, do coletivo Mulekalê.
O Juventude nas Cidades, em parceria com o Instituto AMMA Psique e Negritude – organização não governamental de enfrentamento ao racismo, formado por um grupo de psicólogas – ofereceu tratamento no qual os jovens puderam refletir sobre os primeiros impactos da pandemia em suas vidas.
Juventude nas Cidades: ações
Entre os dias 14 e 15 de maio, a Oxfam Brasil, em parceria com as instituições que coordenam o programa Juventudes na Cidade no Brasil, promoveu o 1º Festival Juventudes nas Cidades. O evento foi inteiramente online, e contou com 24 atrações de arte e cultura organizadas por coletivos de jovens de São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Distrito Federal.
Mesmo com os obstáculos impostos pela pandemia, os jovens participantes do programa Juventude nas Cidades também desenvolveram uma série de ações voltadas para formação e com foco nos coletivos culturais, no último ano. São elas:
Cartilha para inscrição de projetos em editais públicos – O documento foi criado a partir de oficina colaborativa que incentivou os jovens a pensarem na sustentabilidade dos coletivos culturais periféricos. Acesse aqui.
Ações integradas sobre a cultura de segurança para defensores de direitos humanos – A atividade envolveu encontros e um episódio do podcast Rádio Juv, sobre vigilância, privacidade e segurança. Também foi produzido um painel que ilustra as motivações dos coletivos e o que fazer para garantir a proteção física e digital dos ativistas.
Carta manifesto – O documento foi destinado a candidatos(as) a vereadores(as) nas eleições municipais de São Paulo de 2020. Elaborado a partir de encontros quinzenais que incentivaram troca de saberes e debates de pautas prioritárias aos jovens, requisitou direitos à empregabilidade, renda e suas intersecções nas dimensões de raça, orientação e identidade de gênero, dentre outras. O manifesto completo está disponível aqui.
O Juventude nas Cidades é uma iniciativa nacional das organizações Oxfam Brasil, Ação Educativa, ONG Fase, IBASE, INESC e Criola.
Um ano após o primeiro caso de covid-19 no Brasil, estamos no pior momento da pandemia: são mais de 250 mil mortes decorrentes da doença. Para tentar entender a dimensão desse número, o comparamos com a população dos distritos de São Paulo. 250 mil pessoas equivale aproximadamente ao total de habitantes da Cidade Tiradentes ou do Sacomã. Esse valor também corresponde à soma da população de Moema, Campo Belo e Itaim Bibi. Ou todos habitantes da República, Santa Cecília, Bom Retiro e Consolação juntos.
Em um ano, morreu o equivalente à soma da população dos 146 menores municípios do país. Mais de 140 cidades brasileiras teriam desaparecido nesse intervalo de tempo.
Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas com políticas públicas que fossem de fato pensadas para preservação da vida, considerando os estudos e pesquisas que especialistas do mundo todo tem feito para entender o comportamento do vírus, e a realidade de cada território. O uso de máscaras adequadas e o distanciamento social são medidas efetivas, porém, em um país desigual como o Brasil, só essas recomendações não bastam para conter o avanço do vírus. É preciso dar condições para que as populações mais vulneráveis consigam se isolar, como alertamos desde o começo da pandemia. Por exemplo, medidas como o toque de recolher das 23h às 5h, como o que está acontecendo na cidade de São Paulo atualmente, se mostram pouco eficazes, já que é sabido que as pessoas que precisam se deslocar para trabalhar são mais atingidas pela covid-19, como mostramos em estudo divulgado ano passado feito em parceria com o LabCidade.
Depois de um ano, estamos todes cansades de falar sobre a covid-19. Mas precisamos continuar pressionando as autoridades para que medidas de combate à pandemia – lockdown efetivo, auxílio emergencial, dentre outras – sejam implementadas com urgência, e para que a ciência seja o principal critério para a manutenção do direito à vida de toda a população.
Confira todos os textos e estudos que publicamos até agora sobre a covid-19:
Vacinar grupos etários prioritários (idosos) em regiões específicas das cidades pode ser uma estratégia mais eficiente no atual cenário de escassez de doses. É o que sugere estudo do Instituto Pólis realizado a partir do mapeamento da mortalidade por Covid-19 na cidade de São Paulo ao longo de 2020. Os dados revelam que priorizar áreas onde estão as populações mais impactadas pela pandemia é fundamental para avançar na tarefa de imunizar a população da capital paulista diante da quantidade insuficiente de imunizantes.
Vacinar grupos por critérios territoriais, concentrando os imunizantes em determinadas zonas, poderia criar “bolhas de imunidade” mais rapidamente. Essas bolhas se comportariam como barreiras físicas à circulação do vírus, com potencial de reduzir a taxa de contágio nas cidades como um todo. Além de imunizar alguns segmentos populacionais por inteiro – mesmo que localmente – poderia contribuir na redução da disseminação para outras áreas menos atingidas. Além disso, é fundamental definir a priorização a partir de um diagnóstico epidemiológico que traga inclusão e o enfrentamento das desigualdades em saúde.
A pandemia da Covid-19 trouxe para o Brasil uma gravíssima crise sanitária, econômica, política e social, com brutal piora nas condições de vida, sobretudo das populações mais pobres e vulnerabilizadas do país. Preocupadas com o impacto da pandemia para a segurança, saúde e dignidade da população de comunidades, periferias e grupos vulnerabilizados, o Instituto Pólis, junto com dezenas de entidades, coletivos, movimentos sociais e organizações populares formaram uma Articulação Nacional de Redes e Entidades da Sociedade Civil pelo combate ao Covid-19 nas Periferias e Grupos Vulnerabilizados.
A Articulação vem monitorando a atuação e ausências do poder público no contexto da Pandemia a partir das vivências e realidades dos grupos e comunidades vulnerabilizados, com o objetivo de disputar narrativas e dar visibilidade a omissões e violações de direitos, e para incidir por políticas públicas e ações imediatas e estratégicas na perspectiva do direito à cidade e justiça social. O monitoramento foi sistematizado, apresentando de forma sintética os resultados levantados a partir dos diálogos em territórios e com grupos específicos.
O estudo ouviu lideranças e representantes de 195 comunidades e grupos, em 30 cidades e 15 estados do Brasil, entre 28 de maio até 3 de julho de 2020. Os dados foram coletados por meio de entrevistas e questionários. As perguntas foram direcionadas para os seguintes públicos temas prioritários:
Público-alvo:
Residentes em comunidades, favelas, assentamentos precários
População em situação de rua
Catadoras e catadores de resíduos sólidos
Temas prioritários:
Apoio Humanitário / Financeiro
Acesso à Informação
Acesso a Serviços Básicos
Condições de Moradia / Abrigamento
Condições de Mobilidade
Acesso a Serviços de Saúde e Assistência Social
Militarização dos territórios
Gênero e violência doméstica
“A sociedade civil contribuiu com muito do que foi a resistência e a proteção das pessoas em relação ao COVID-19 nas periferias e com grupos vulneráveis. Esse monitoramento constata que de fato o apoio do poder público foi muito limitado e em alguns casos foi inexistente”, destaca Socorro Leite, Diretora Executiva Nacional da organização Habitat para a Humanidade Brasil, uma das entidades coordenadoras do monitoramento.
Neste momento em que as cidades estão retomando as atividades, é fundamental a constatação de que muitas das iniciativas do poder público que tiveram algum nível de proteção à população precisam continuar e, em alguns casos, é necessário ainda mais medidas de atenção a esta população, que está mais exposta ao risco da pandemia.
Desde o início da pandemia no Brasil muito tem se debatido acerca dos impactos nos diferentes territórios e segmentos sociais. Algo fundamental tanto para encontrar os melhores meios de prevenir a difusão da doença como de proteger aqueles que estão mais vulneráveis. Entretanto a forma como às informações e os dados têm sido divulgados não auxilia na análise dos impactos territoriais e da difusão espacial da pandemia, dificultando também o seu devido enfrentamento.
Na cidade de São Paulo a escala de análise da pandemia ainda são os distritos, que correspondem a porções enormes do território e com população maior do que muitas cidades de porte médio. Essa visão simplificadora ignora as heterogeneidades e desigualdades territoriais existentes na cidade. Conforme apontamos anteriormente, infelizmente a dimensão territorial não é considerada de forma adequada, prevalecendo uma leitura simplificada e, até mesmo, estigmatizada, como por exemplo quando se afirma ”onde tem favela tem pandemia”.
Em artigo anterior, apresentamos o resultado de pesquisa em outra escala, a da rua. Para tanto mapeamos às hospitalizações e óbitos pós internação pela COVID-19 a partir do CEP – informação fornecida nas fichas dos pacientes hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda e Grave (SRAG) incluindo COVID-19 e disponibilizadas pelo DATASUS até aquele momento (18 de maio de 2020). Esse procedimento permitiu olhar mais detalhadamente para a distribuição territorial da pandemia, e assim evidenciar a complexidade de questões que explicam a sua difusão espacial, não apenas a precariedade habitacional e a presença de favelas.
A partir desta constatação passamos a investigar outros possíveis elementos explicativos, entre eles, a mobilidade urbana durante o período da pandemia, especificamente compreendendo o fluxo de circulação das pessoas na cidade e como isso influencia na difusão espacial da COVID-19. Com base nos dados disponibilizados pela SPTrans sobre dados de GPS dos ônibus, e a partir do roteamento de viagens selecionadas da Pesquisa Origem Destino de 2017, buscamos identificar de onde saíram e para onde foram as pessoas que circularam de transporte coletivo no dia 5 de junho, dia em que, segundo a SPTrans, cerca de 3 milhões de viagens foram realizadas usando os ônibus municipais.
Ao mesmo tempo, fizemos uma leitura territorial sobre a origem das viagens durante o período de pandemia. Para esta análise identificou-se na Pesquisa Origem Destino (2017) as pessoas que usam transporte público como modo principal para chegar ao seu destino, motivadas pela ida ao local de trabalho. Consideramos apenas as viagens realizadas por pessoas sem ensino superior e em cargos não executivos. Esse perfil foi selecionado considerando que pessoas com ensino superior, em cargos executivos e profissionais liberais tenham aderido ao teletrabalho e que viagens com outras motivações, como educação e compras, pararam de ocorrer.. Esses dados de mobilidade foram correlacionados com os dados de hospitalizações por SRAG não identificada, e COVID-19, até o dia 18 de maio, última data para qual o dado do CEP no DATASUS estava disponibilizado pelo Ministério da Saúde.
Desta forma produzimos um mapa que ilustra a distribuição dos lugares de origem das viagens diárias, a partir de uma distribuição que considera número de viagens nas zonas origem-destino e distribuição populacional dentro dessas zonas. O resultado mostra uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens das viagens com as manchas de concentração do local de residência de pessoas hospitalizadas com COVID-19 e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) sem identificação, possivelmente casos de COVID-19, mas que não foram testados ou não tiveram resultado confirmado.
Com base neste estudo, pode-se dizer que, em síntese, quem está sendo mais atingido pela COVID são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar. Embora tenhamos mapeado os locais que concentram os maiores números de origens ou destinos dos fluxos de circulação por transporte coletivo, não é possível ainda afirmar se o contágio ocorreu no percurso do transporte, no local de trabalho ou no local de moradia, o que vai exigir análises futuras, que serão realizadas no âmbito desta pesquisa. Mas o que está evidente é que quem saiu para trabalhar e realizou percursos longos de transporte coletivo é que quem foi mais impactado pelos óbitos ocorridos. Enquanto esse fator mostrou associação forte com os casos de hospitalizações por SRAG não identificada e COVID-19, a densidade demográfica – frequentemente associada a áreas favelizadas e bairros populares – apresentou associação fraca.
Ainda que preliminares, esses dados apontam para a incoerência e inconsequência da abertura planejada pelas prefeituras e governo do estado. A reabertura de comércios e restaurantes implica em aumentar significativamente o número de áreas de origens com mais densidades de viagens e maior circulação de pessoas no transporte público. Se o maior número de óbitos está nos territórios que tiveram mais pessoas saindo para trabalhar durante o período de isolamento, temos que pensar tanto em políticas que as protejam em seus percursos como ampliar o direito ao isolamento paras as pessoas que não estão envolvidas com serviços essenciais mais precisam trabalhar para garantir seu sustento, o que reforça a importância de políticas de garantia de renda e segurança alimentar, subsídios de aluguel e outras despesas, e ações articuladas a coletivos e organizações locais para a proteção dos que mais estão ameaçados durante a pandemia.
Embora esses dados sejam públicos, nos parece que estão sendo ignorados para a definição de estratégias de enfrentamento a pandemia. É urgente repensar a forma como a política de mobilidade na cidade tem sido pensada, já que foram cometidos equívocos tal como o mega rodízio para veículos individuais, que durou apenas alguns dias e provocou uma superlotação nos transportes públicos ampliando os riscos das pessoas que precisavam sair para trabalhar. Ainda não foram implementadas medidas que garantam condições seguras para que as pessoas dos serviços essenciais pudessem fazer as viagens necessárias para exercer seus trabalhos sem ampliar a difusão da infecção do coronavírus. Bem como não existe uma leitura sobre a mobilidade metropolitana – inclusive não existem dados abertos sobre isso – ignorando as dinâmicas pendulares de pessoas que moram e trabalham em municípios diferentes da região metropolitana.
Esse texto é uma parceria do Labcidade e Instituto Pólis. Os autores são: Aluizio Marino, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Raquel Rolnik, Paula Santoro e Pedro Mendonça