Compreender o direito à cidade a partir de um olhar interseccional é fundamental, afinal as pessoas têm experiências muito distintas nas cidades dependendo de sua classe, gênero, raça e sexualidade. A interseccionalidade é um projeto de liberdade, de construção política e emancipatória. Ela compreende que as propostas de democratização considerem as opressões cruzadas entre os marcadores sociais de diferença, para nos libertar delas. Isto é, mais do que diagnosticar que as condições não são as mesmas para todo mundo, deve-se costurar um projeto onde caibam todas as pessoas em suas diferentes formas, expressões e subjetividades. É por isso que a interseccionalidade é um desafio que deve ser encampado em todas as dimensões sociais. Não há democracia possível se ela não contemplar todas as pessoas em sua vasta e rica diversidade. Confira nossa seleção de alguns materiais que abordam essa perspectiva:
Qual a relação entre crise climática e direito à cidade? Embora esteja bastante difundida a ideia de que a crise climática é global, generalizada, e que estamos no mesmo barco, seus impactos não serão igualmente sentidos por todas as pessoas. A desigualdade socioterritorial condiciona os mais vulneráveis à precariedade urbana e, consequentemente, aos efeitos mais intensos da crise climática, pois os eventos que antes eram considerados extremos, agora se tornarão frequentes e cada vez mais nocivos. Para entender melhor o tema, veja nossa lista:
Há mais de cinquenta anos, o direito à cidade tem sido um paradigma urbano em movimento, nutrido tanto por contribuições acadêmicas como pela mobilização e reivindicações de organizações e comunidades ao redor do mundo. A redistribuição dos bens materiais caminha lado a lado com a democratização da tomada de decisões, em um projeto de cidade que enfatiza seu caráter de comunidade política e território socioecológico cujas dinâmicas não podem se limitar ao âmbito administrativo. Uma noção de cidadania revisitada, que implica desvinculá-la do status de nacionalidade para conectá-la ao acesso a direitos e oportunidades para uma vida digna.
Desde o Estatuto da Cidade, do Brasil (2001), ou a Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2005), passando pela Constituição do Equador (2008) e pela Constituição da Cidade do México (2017), o direito à cidade conta atualmente com amplo reconhecimento em marcos jurídicos nacionais e locais em diferentes países da região. Por sua vez, sua inclusão na Nova Agenda Urbana (2016) supõe, junto com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (2015) e o Acordo de Paris (2015), um marco importante para dar continuidade aos compromissos assumidos por governos do mundo todo para enfrentar as causas profundas das desigualdades sociais, a segregação urbana e a mudança do clima. No entanto, do papel aos fatos existe, sem dúvida, um longo caminho a ser percorrido; e, como o espaço urbano, o direito à cidade também é um conceito em disputa.
As múltiplas crises sanitárias, sociais, políticas, econômicas, climáticas e ambientais são sentidas com força na América Latina. São preocupantes os retrocessos em direção a práticas autoritárias e discursos que buscam invisibilizar o racismo, a misoginia e a LGBT+fobia como problemas estruturais em nossas sociedades. O contexto de pandemia global acentua os desafios, mas também aponta para as prioridades e possibilidades para o futuro imediato. A situação de emergência sem precedentes desencadeada pela COVID-19 evidencia a interdependência e a vulnerabilidade da vida, indicando a urgência de repensar nossas cidades e territórios a partir de uma escala de maior proximidade e uma ética do cuidado. Neste marco, o papel das comunidades e do público torna-se crítico para avançar em estratégias de solidariedade e colaboração multi-escala em direção a horizontes mais equitativos, democráticos e sustentáveis.
Objetivo geral
Propor perspectivas políticas e sociais para avançar na realização do direito à cidade na América Latina a partir da ótica das desigualdades urbanas, reunindo reflexões que proporcionem insumos práticos a serem utilizados em iniciativas de sensibilização, formação e incidência por atores e organizações interessadas.
Objetiva-se, então, um Caderno que reúna análises, depoimentos e propostas provenientes de diversas vozes e em diferentes formatos, com o fim de dar conta dos debates atuais sobre o direito à cidade dentro e fora da academia.
Objetivos específicos
Posicionar o direito à cidade como paradigma multidimensional capaz de orientar respostas aos desafios estruturais das cidades latino-americanas, seu meio rural e seu ecossistema em geral.
Identificar alternativas e processos com potencial para promover cidades mais equitativas, democráticas e sustentáveis, e não tanto diagnósticos gerais sobre as limitações das políticas e dinâmicas urbanas.
Ampliar as articulações do direito à cidade com as agendas feminista, anti-racista, LGBT+ e indígenas.
Perguntas orientadoras para as contribuições
O que o direito à cidade contribui para abordar e trabalhar as questões urbanas em geral? E sobre as desigualdades urbanas em particular?
Qual a relevância dos princípios e diretrizes oferecidos pelo direito à cidade para enfrentar as múltiplas crises atuais (sanitária, social, política, econômica e ambiental)?
Como enfrentar os desafios mais relevantes que se colocam hoje para a sua implementação a nível local, nacional e/ou regional?
Como aproveitar as oportunidades e enfrentar as limitações que existem para aprofundar os conteúdos feministas, anti-racistas, LGBT+ e indígenas na agenda do direito à cidade hoje?
Diretrizes editoriais
Solicita-se o envio de textos de fácil leitura e para um público não necessariamente especializado no tema; em formato Word, com extensão entre 2.500 e 3.500 palavras, em espanhol ou português, segundo o idioma de origem; de autoria individual ou coletiva, e de preferência inéditos. Recomenda-se acompanhar o texto com fotos e links para vídeos ou outros recursos disponíveis.
Prazo para envio das contribuições: 26 de fevereiro de 2021
Luis Bonilla Ortiz-Arrieta (GPR2C e CLACSO) – Manuel Dammert (CLACSO) – Pablo Vommaro (CLACSO) – Rodrigo Faria G. Iacovini (GPR2C) – Lorena Zárate (GPR2C)
Como as políticas urbanas podem ajudar no enfrentamento das mudanças climáticas?
No começo de outubro do ano passado, cidades como São Paulo e Belo Horizonte registraram a maior temperatura de suas histórias. Acredita-se que o incêndio que já devastou mais de 26% do pantanal brasileiro esteja diretamente conectado com esse fenômeno. Muito além deste episódio, são inúmeros os efeitos das mudanças climáticas nas cidades nas últimas décadas. Porém, os centros urbanos não são sujeitos passivos neste processo, sendo também responsáveis por sua aceleração. É por isso que precisamos de políticas públicas municipais efetivas que se preocupem com a redução dos impactos climáticos e com a emissão de gases poluentes na atmosfera.
projeto mudando o clima das eleições
Por esses motivos, ano passado realizamos uma série de três lives sobre temas como implementação do Acordo de Paris através de políticas urbanas municipais, acordo Verde Tupiniquim, agroecologia, vínculos urbano-rurais e as implicações para a justiça climática, bons exemplos internacionais, mobilidade urbana, entre outros. As conversas estão disponíveis na íntegra em nosso canal do youtube.
As discussões apresentadas nas lives inspiraram também a construção de dois textos, publicados no Nexo Políticas Públicas, confira abaixo:
Juventudes nas Cidades é um ação conjunta envolvendo sete organizações da sociedade civil com o intuito de contribuir para o enfrentamento das desigualdades no espaço urbano, promover os direitos das juventudes e fortalecer a capacidade de jovens e coletivos de periferias urbanas e favelas de exercer seu direito à cidade e identificar alternativas de inclusão econômica.
Nós conversamos com alguns dos coletivos que fazem parte do projeto, confira as entrevistas nos links abaixo:
Como todos direitos humanos, o direito à moradia é construído cotidianamente através da luta de movimentos sociais. A partir da pressão exercida por eles, diferentes países passaram a incorporar esse direito em sua legislação e em acordos e tratados internacionais. No Brasil, além de previsto na Constituição Federal (art. 6o) e em várias leis infraconstitucionais, também são aplicáveis no país acordos e tratados internacionais de direitos humanos que incluam este direito (parágrafo 2o, art. 5o, CF).
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Por isso, o governo federal, estadual e municipal são obrigados a cumprir as determinações, por exemplo, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Previsto no art. 11 do pacto, o direito à moradia adequada está enquadrado como parte essencial do direito de toda pessoa a um nível de vida adequado. O direito à moradia não é, portanto, apenas a oferta de um teto e quatro paredes. As políticas habitacionais devem obrigatoriamente cumprir elementos que – segundo o Comentário Geral número 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU – compõem este direito: 1) habitabilidade, 2) acesso a equipamentos, serviços e infraestrutura, 3) localização adequada, 4) segurança da posse, 5) custo acessível, 6) adequação cultural, e 7) acessibilidade. Nas próximas semanas, explicaremos cada um desses elementos e suas implicações para a política habitacional brasileira.
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É aí onde mora o direito à moradia, na combinação de lutas sociais, leis e tratados internacionais. Além do PIDESC, vale a pena dar uma olhada em vários outros tratados onde o direito à moradia também mora: no Pacto internacional de direitos civis e políticos, na Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (art. 5o), na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (art. 14), na Convenção sobre os direitos das crianças (arts. 16 e 27), na Convenção internacional para a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias (art. 43), Declaração do Direito dos Indígenas, dentre outros.
A expressão “direito à cidade” foi cunhada por Henri Lefebvre, em 1968, ano que ficou marcado pelo potente movimento iniciado pelas juventudes engajadas na luta por direitos civis, liberação sexual, oposição ao conservadorismo na França e se espalhou por outros países. Lefebvre percebeu que as cidades haviam se convertido no locus de reprodução das relações capitalistas, regulada pelo cotidiano, pelo trajeto casa-trabalho, sem possibilidades de encontros criativos e manifestações de desejos. Ao mesmo tempo, em que as ruas poderiam ser também lugares de resistência e superação criativa desse modelo.
As repressão a protestos, manifestações culturais e até mesmo a trabalhadores da economia informal são cenas comuns nos espaços públicos da cidade. A justificativa costuma ser “a manutenção da ordem”. Mas que ordem é essa? Quem estabelece? Essa ordem é justa? Há outras formas possíveis de se construir e, até mesmo, organizar o espaço público das cidades?⠀⠀
Os espaços públicos são por excelência o local em que exercemos nosso direito à cidade. Ruas, praças, calçadas, parques não são apenas lugares de passagem no deslocamento casa-trabalho, mas sim espaços fundamentais para o nosso lazer, expressão artística, mobilização política, enfim, para o exercício da nossa cidadania. Não há vivência possível de cidade sem a utilização destes espaços; não há direito à cidade sem podermos aproveitar de forma segura, justa, democrática e saudável nossos espaços públicos.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Como bem pontua Rodrigo Faria G. Iacovini, no texto “Por uma nova ordem do espaço público: o direito à cidade para todos”, é preciso “construir uma nova utopia para as cidades brasileiras, construindo novas formas de encarar seus espaços públicos. Eles não podem ser vistos como o espaço do medo e da violência; mas precisam ser reconstruídos como lugares de esperança e oportunidades”.
Por isso, o direito à cidade não é só a reivindicação por serviços e infraestrutura urbana, como transporte, moradia, saneamento. Tudo isso é importante, mas podem ser proporcionados sem que nenhuma ruptura ocorra nas formas em que as cidades são (re)produzidas e apropriadas. Para o direito à cidade, as desigualdades e opressões, como o racismo, machismo e LGBTfobia estão determinadas na produção do espaço. Para transformar essa lógica, precisamos ter o direito de habitar, usar, ocupar, produzir, governar e desfrutar das cidades de forma equitativa.
Trata-se de mudar e reinventar nossos territórios de acordo com os nossos mais profundos desejos, de construir coletivamente um novo projeto completamente livre de qualquer sistema de opressões. Uma construção de cidade feminista, antirracista, antilgbtfóbica, democrática e que adote políticas voltadas ao combate da desigualdade.
Confira a resposta de mulheres negras e indígenas que articulam-se para o enfrentamento das opressões e organizam as resistências para a construção do bem viver!
Simone Nascimento @simoneehnois é Jornalista, integra a coordenação Estadual do MNU(Movimento Negro Unificado), o movimento RUA Juventude Anticapitalista e a Marcha Das Mulheres Negras de São Paulo.
“Essa cidade do futuro é pra ontem, urgente. Começa com as mulheres negras tendo o direito de falar e construir esse lugar com as tecnologias de sobrevivência e comunidade que o nosso povo tem desenvolvido nos últimos séculos. Em cada bairro desta cidade existem centenas de mulheres negras que sabem de cada detalhe do que acontece com suas comunidades, cada problema e também qual seria melhor a solução. São Paulo é a cidade mais rica do país e a mais desigual. Precisamos construir o bem viver das mulheres negras, isso significa que Justiça social é o mínimo para pensarmos um futuro que não perpetue a violência do estado contra nós. Precisamos de uma cidade em que a PM não pise de botina em nossos pescoços ou mate nossos filhos, irmãos, familiares. Esse futuro digno só existirá se não existir racismo, machismo e miséria, que atravessam nossos corpos. Se tiver direitos para as mulheres negras haverá para todas e todos. Pra começar, uma cidade em que tenhamos direito à cidade! Nós mulheres negras só circulamos na cidade para trabalhar, mas queremos emprego digno, salário igual, moradia, saúde, educação, transporte digno, direito à cultura, sem racismo, sem violência.”
Potyra Guajajara é do povo Guajajara da resistência na Aldeia maracanã, Rio de Janeiro e também artesã indígena.
“Quando a gente fala das cidades primeiro a gente pensa, o que são as cidades hoje? O que a gente espera das cidades? Esperamos que nós indígenas tenhamos nosso lugar, que nossas crianças indígenas tenham também lugar na cidade. Esperamos respeito a nossa cultura. Quando andamos pela cidade as pessoas sempre falam: O que vocês vieram fazer aqui? Respondemos: A gente não veio fazer nada aqui, a gente sempre foi daqui, a gente sempre esteve aqui na cidade, nesse ‘lugar’. A cidade que chegou até nós, não nós que fizemos ou chegamos na cidade. Então é a cidade que tem que aceitar e conseguir de alguma forma incluir todo mundo, ter políticas públicas para todos e respeitar. Na cidade não pode ter racismo contra nós indígenas e contra os negros, não pode ter nenhuma forma de preconceito contra os LGBTQI+, contra as mulheres. É isso que a gente espera da cidades hoje.”
Luana Alves @oiluanaalves é Psicóloga da Saúde Coletiva e Coordenadora da Rede Emancipa.
“Sonho com um mundo em que as mulheres negras não estejam em desvantagem social, econômica, cultural, histórica. E a partir desse mundo, em que as mulheres negras não são colocadas em desvantagem, a cidade é completamente outra. É uma cidade em que a gente pode circular para lazer, para cultura, pra ser feliz, e não só pra trabalhar. É uma cidade que a gente tenha direito a colocar nossa impressão sobre ela, a gente consiga se inscrever nessa cidade não só como trabalhadora, e como base da pirâmide, mas como alguém que pensa a cidade, que faz a cidade culturalmente, que usufrui dela também. Ser produtora, e ser alguém que usufrui, não só como alguém que está construindo o trabalho da base.”
Desde o início da pandemia no Brasil muito tem se debatido acerca dos impactos nos diferentes territórios e segmentos sociais. Algo fundamental tanto para encontrar os melhores meios de prevenir a difusão da doença como de proteger aqueles que estão mais vulneráveis. Entretanto a forma como às informações e os dados têm sido divulgados não auxilia na análise dos impactos territoriais e da difusão espacial da pandemia, dificultando também o seu devido enfrentamento.
Na cidade de São Paulo a escala de análise da pandemia ainda são os distritos, que correspondem a porções enormes do território e com população maior do que muitas cidades de porte médio. Essa visão simplificadora ignora as heterogeneidades e desigualdades territoriais existentes na cidade. Conforme apontamos anteriormente, infelizmente a dimensão territorial não é considerada de forma adequada, prevalecendo uma leitura simplificada e, até mesmo, estigmatizada, como por exemplo quando se afirma ”onde tem favela tem pandemia”.
Em artigo anterior, apresentamos o resultado de pesquisa em outra escala, a da rua. Para tanto mapeamos às hospitalizações e óbitos pós internação pela COVID-19 a partir do CEP – informação fornecida nas fichas dos pacientes hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda e Grave (SRAG) incluindo COVID-19 e disponibilizadas pelo DATASUS até aquele momento (18 de maio de 2020). Esse procedimento permitiu olhar mais detalhadamente para a distribuição territorial da pandemia, e assim evidenciar a complexidade de questões que explicam a sua difusão espacial, não apenas a precariedade habitacional e a presença de favelas.
A partir desta constatação passamos a investigar outros possíveis elementos explicativos, entre eles, a mobilidade urbana durante o período da pandemia, especificamente compreendendo o fluxo de circulação das pessoas na cidade e como isso influencia na difusão espacial da COVID-19. Com base nos dados disponibilizados pela SPTrans sobre dados de GPS dos ônibus, e a partir do roteamento de viagens selecionadas da Pesquisa Origem Destino de 2017, buscamos identificar de onde saíram e para onde foram as pessoas que circularam de transporte coletivo no dia 5 de junho, dia em que, segundo a SPTrans, cerca de 3 milhões de viagens foram realizadas usando os ônibus municipais.
Ao mesmo tempo, fizemos uma leitura territorial sobre a origem das viagens durante o período de pandemia. Para esta análise identificou-se na Pesquisa Origem Destino (2017) as pessoas que usam transporte público como modo principal para chegar ao seu destino, motivadas pela ida ao local de trabalho. Consideramos apenas as viagens realizadas por pessoas sem ensino superior e em cargos não executivos. Esse perfil foi selecionado considerando que pessoas com ensino superior, em cargos executivos e profissionais liberais tenham aderido ao teletrabalho e que viagens com outras motivações, como educação e compras, pararam de ocorrer.. Esses dados de mobilidade foram correlacionados com os dados de hospitalizações por SRAG não identificada, e COVID-19, até o dia 18 de maio, última data para qual o dado do CEP no DATASUS estava disponibilizado pelo Ministério da Saúde.
Desta forma produzimos um mapa que ilustra a distribuição dos lugares de origem das viagens diárias, a partir de uma distribuição que considera número de viagens nas zonas origem-destino e distribuição populacional dentro dessas zonas. O resultado mostra uma forte associação entre os locais que mais concentraram as origens das viagens com as manchas de concentração do local de residência de pessoas hospitalizadas com COVID-19 e Síndrome Respiratória Grave (SRAG) sem identificação, possivelmente casos de COVID-19, mas que não foram testados ou não tiveram resultado confirmado.
Com base neste estudo, pode-se dizer que, em síntese, quem está sendo mais atingido pela COVID são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar. Embora tenhamos mapeado os locais que concentram os maiores números de origens ou destinos dos fluxos de circulação por transporte coletivo, não é possível ainda afirmar se o contágio ocorreu no percurso do transporte, no local de trabalho ou no local de moradia, o que vai exigir análises futuras, que serão realizadas no âmbito desta pesquisa. Mas o que está evidente é que quem saiu para trabalhar e realizou percursos longos de transporte coletivo é que quem foi mais impactado pelos óbitos ocorridos. Enquanto esse fator mostrou associação forte com os casos de hospitalizações por SRAG não identificada e COVID-19, a densidade demográfica – frequentemente associada a áreas favelizadas e bairros populares – apresentou associação fraca.
Ainda que preliminares, esses dados apontam para a incoerência e inconsequência da abertura planejada pelas prefeituras e governo do estado. A reabertura de comércios e restaurantes implica em aumentar significativamente o número de áreas de origens com mais densidades de viagens e maior circulação de pessoas no transporte público. Se o maior número de óbitos está nos territórios que tiveram mais pessoas saindo para trabalhar durante o período de isolamento, temos que pensar tanto em políticas que as protejam em seus percursos como ampliar o direito ao isolamento paras as pessoas que não estão envolvidas com serviços essenciais mais precisam trabalhar para garantir seu sustento, o que reforça a importância de políticas de garantia de renda e segurança alimentar, subsídios de aluguel e outras despesas, e ações articuladas a coletivos e organizações locais para a proteção dos que mais estão ameaçados durante a pandemia.
Embora esses dados sejam públicos, nos parece que estão sendo ignorados para a definição de estratégias de enfrentamento a pandemia. É urgente repensar a forma como a política de mobilidade na cidade tem sido pensada, já que foram cometidos equívocos tal como o mega rodízio para veículos individuais, que durou apenas alguns dias e provocou uma superlotação nos transportes públicos ampliando os riscos das pessoas que precisavam sair para trabalhar. Ainda não foram implementadas medidas que garantam condições seguras para que as pessoas dos serviços essenciais pudessem fazer as viagens necessárias para exercer seus trabalhos sem ampliar a difusão da infecção do coronavírus. Bem como não existe uma leitura sobre a mobilidade metropolitana – inclusive não existem dados abertos sobre isso – ignorando as dinâmicas pendulares de pessoas que moram e trabalham em municípios diferentes da região metropolitana.
Esse texto é uma parceria do Labcidade e Instituto Pólis. Os autores são: Aluizio Marino, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Raquel Rolnik, Paula Santoro e Pedro Mendonça
Publicamos há menos de um mês uma discussão acerca dos mapas oficiais sobre a COVID-19 em São Paulo (veja aqui). Mostramos que na medida em que esses mapas escondiam informações isto impossibilitava a elaboração de políticas públicas efetivas de combate à pandemia. Poucos dias depois ficou evidente a falta de uma estratégia territorializada, já que as iniciativas adotadas pelos governos municipal e estadual de São Paulo para garantir o isolamento social – como o “mega rodízio” e o “feriadão”-, não funcionaram.
Nessa semana, mesmo assistindo ao aumento do contágio pelo novo coronavírus, o Governo do Estado de São Paulo iniciou um plano de retomada das atividades econômicas e serviços não essenciais. O Plano São Paulo prevê essa retomada em cinco fases de forma gradual, sendo a fase 1 com mais restrições e a fase 5 com mais atividades liberadas.
Embora seja importante planejar a retomada da economia, impactada pelas medidas de isolamento social, o plano lançado pelo Governo do Estado sofreu inúmeras críticas. Tais críticas apontam, por um lado, que a retomada ainda é precoce e que a atual fase de contágio no estado de São Paulo exigiria medidas mais duras visando a restrição de circulação das pessoas, chamadas também de lockdown; que evidentemente deveriam ser compensadas por medidas de proteção social que garantisse a possibilidade de isolamento para a população de forma geral. Por outro lado, também foi criticada a definição de fases mais restritivas em municípios da Região Metropolitana de São Paulo que apresentam índices (com base nos critérios adotados pelo plano) melhores que o da capital.
O plano de retomada apresenta outra problemática que abordaremos aqui: ele simplifica o território, abstraindo uma série de fatores essenciais para a construção de um planejamento sólido. O lançamento do plano já deixou evidente essa simplificação, apresentando a escala de ação a partir de 17 regiões do território paulista, denominadas “Departamentos Regionais de Saúde”. Na proposta inicial a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) estava dividida em dois departamentos: (i) a capital; e (ii) todos os outros 38 municípios. Evidente que essa simplificação gerou inúmeras críticas por parte dos gestores locais, como resultado o Governo do Estado ampliou a subdivisão da RMSP. Além da capital, foram definidos cinco recortes territoriais: Norte, Sudeste/ABC, Leste/Alto Tietê, Sudoeste e Oeste.
Mesmo com as mudanças adotadas pelo Governo do Estado, ainda persiste a simplificação de um território bastante complexo e, sobretudo, heterogêneo. A leitura com base de indicadores da capacidade de atendimento da rede de saúde desconsidera elementos urbanísticos essenciais para se pensar em maiores ou menores propensões ao contágio. Desconsidera o fato de que os municípios da RMSP possuem relações e conexões cotidianas, em especial de pessoas que moram em outros municípios e vêm à capital para trabalhar, podendo ampliar a difusão do COVID19 neste fluxo entre casa e trabalho. O plano de retomada proposto dessa forma escancara a ausência de uma estratégia regional territorializada que compreenda a multiplicidade de paisagens e dinâmicas sociais existentes na metrópole e como isso afeta a difusão espacial da doença.
É urgente uma abordagem multidisciplinar para a RMSP, um dos epicentros da pandemia, com a presença não somente de profissionais da saúde, mas também de geógrafos, urbanistas, sociólogos e outros profissionais que pensam o território.
No sentido de contribuir e incidir sobre as políticas públicas emergenciais necessárias, continuamos empenhados em compreender a difusão espacial da COVID-19 em São Paulo. A partir das informações disponibilizadas recentemente via DATASUS elaboramos uma série de mapas temáticos e um mapa interativo. Os dados gerados estão disponibilizados em formato aberto.
Os mapas abaixo possibilitam análises mais precisas da difusão espacial da pandemia do que os mapas oficiais, que utilizam a escala dos distritos ou das cidades. Isso foi possível a partir da identificação do CEP de residência das pessoas que foram hospitalizadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), entre elas a COVID-19.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
Utilizamos os mapas de calor como forma de representá-los, uma técnica cartográfica que identifica os locais onde há a maior concentração de eventos, no caso desses mapas, de hospitalizações e óbitos pós-internação por COVID-19 no raio de um quilômetro. No mapa da esquerda , as manchas mais escuras correspondem aos locais com maior concentração de moradores que foram internados em hospitais com diagnóstico de COVID- 19. No lado direito a mesma leitura, só que mostrando as maiores concentrações de moradores que morreram entre aqueles que foram hospitalizados. A análise desses mapas deixa evidente a simplificação de uma leitura por distritos que são complexos e apresentam internamente diferentes contextos territoriais e de condições de urbanização, o que dirá da leitura por cidades ou regiões.
A sub notificação dos casos e óbitos por COVID-19 é um dos principais desafios para compreender a difusão da pandemia, por isso trabalhamos também com os casos de SRAG não identificados, e que muito provavelmente são devido a COVID-19. A idéia de incluir estes dados também se deve ao fato de ter aumentado muito este ano as internações por SRAG, em comparação aos anos anteriores.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
A leitura territorial por CEP das hospitalizações por SRAG, que tem grande aderência aos mapas de calor dos endereços dos hospitalizados com COVID-19 nos ajuda a complexificar o debate, ao mesmo tempo em que levanta várias indagações. Simplificações do tipo “onde tem favela tem COVID” ou padrões duais do tipo centro/periferia não se sustentam na busca de compreender os fatores que levam a determinados territórios ter uma maior concentração de casos ou óbitos. Para poder ler estes mapas com o devido cuidado é necessário ainda sobrepor com outros mapas/camadas – fluxos da mobilidade urbana, áreas de comércio e intensa circulação, localização de hospitais e de locais de moradia de profissionais de saúde, concentração de idosos, dados raciais – e sua leitura em múltiplas escalas. É o caminho que as equipes do Instituto Pólis e Lab Cidade ainda estão fazendo, em diálogo com parceiros.
O mapa a seguir, feito a partir de dados de uma unidade de saúde da Região Metropolitana, sugere que, ainda no início da expansão da doença, havia uma associação forte entre os casos de Covid-19 e moradores de áreas com grande fluxo de circulação, em função da presença de áreas comerciais e terminais de transporte. Nesta mesma base de dados identificou-se que 42,8% dos pacientes testados positivos nesta unidade eram profissionais de saúde, que somados informaram ter estabelecido contato com 69 pessoas no interior de suas casas, a maior parte deles, residente da mesma região onde está localizado o equipamento.
(Elaboração: Pedro Mendonça)
Evidente que os mapas disponibilizados aqui não representam a totalidade de casos e óbitos, somente aqueles que foram hospitalizados (DATASUS) ou atendidos pela unidade de saúde mapeada. Além disso existem várias lacunas que precisam ser consideradas: uma parcela considerável dos dados não está representada no mapa, pois não constava a informação relativa ao CEP; os dados são oriundos das fichas médicas, preenchidas pelos profissionais que atuam na linha de frente dos hospitais, que sob forte pressão podem cometer equívocos ou até mesmo omitir informações durante o preenchimento. Ainda assim, eles sinalizam fortemente a necessidade de considerar a heterogeneidade dos territórios para entender – no caso específico de cada cidade – as formas através das quais a epidemia tem se difundido espacialmente e assim traçar estratégias seguras e enraizadas de prevenção e atendimento à saúde.
Esse texto é uma parceria do Instituto Pólis com o Labcidade. Escrito por Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Danielle Klintowitz, Gisele Brito, Pedro Mendonça, com colaboração de Vitor Nisida e Lara Cavalcante.